segunda-feira, 20 de julho de 2009

TER amigo é fácil; O difícil é SER amigo


Muitas pessoas dizem que é difícil ter amigos nessa nossa vida tão atribulada. Não concordo. Pelo menos, para mim, sempre foi muito fácil. Talvez porque não tenha medo de arriscar e me decepcionar - como já aconteceu algumas vezes -; talvez porque o que colhemos após aquela bela peneirada, seja mais do que suficiente para nossa "auto-subsistência"; talvez porque eu seja um filho da puta de um sortudo do c... Não sei. Só sei tenho vários amigos verdadeiros.

O que a vida me ensinou é que o difícil mesmo é SER amigo. Alguém aqui acha que é fácil? Eu não. Amigo é uma espécie de versão assexuada da amante. Nunca é priopridade. Nunca tem preferência. Sempre a segunda opção. E diferentemente da amante (talvez para compensar a ausência de sexo... hehehe), não se importa muito com isso. Sabe por que? Pelo simples fato de de não se exigir exclusividade quando o assunto é amizade. Podemos ter cinquenta amigos diferentes, e quando um nos põe de lado, lá está outro para nos fazer companhia.

Há um estranho e velado código de ética presente nas amizades. Como se fosse um tipo de DNA. Está lá, e nada pode ser feito para ser mudado.

- Mulheres têm preferência;
- Namoradas têm preferência;
- Esposas, definitivamente, têm preferência;
- Família têm preferência;
- Outros amigos com melhores opções têm preferência;
- preguiça tem preferência;

Enfim, quase tudo é razão para deixarmos o amigo de lado. E isso acontece porque sabemos que ele não irá ligar; não fará teatro e, muito menos, transformará nossa vida em um verdeiro inferno em razão disso. Afinal, amanhã pode ser você quem tenha o imprevisto. SER amigo é mesmo difícil. Não ser a primeira opção e conviver bem com isso, exige racionalidade. Talvez por isso não vejamos tantas mulheres amigas (ahaha... tinha que dar o jab de leve). E é exatamente aí que inicia-se um verdadeiro sofisma vicioso:

As mulheres querem ser amigas;
As mulheres exigem preferência;
Amizades não têm preferência;
As mulheres buscam isso em outro lugar;
Nós somos o "outro lugar";
Homens não exigem preferência;

Conclusão: O amigo será sempre a segunda opção!

Mas é aí que a amizade se destaca. É justamente nessa hora, nesse momento em que tudo parece perdido, que enxergamos o poder desse milenar sentimento: Apesar dos amigos NUNCA serem preferência, SEMPRE temos tempo para eles. Amizade é uma contradição mágica; algo inexplicável que endoidece as mulheres; É o amor desnecessitado de provações. Puro, eterno enquanto dura, inexplicavelmente leve, mesmo que intenso.

Por isso digo: Amo meus amigos, mas minha esposa estará sempre em primeiro lugar! (Afinal, no meu caso, minha esposa também é minha grande amiga, o que é mais uma contradição, pois, nesse caso, ela não se importaria em ser segunda opção, mas...hehehehe)

Feliz dia dos amigos meus amigos! Vocês sabem quem são!

terça-feira, 14 de julho de 2009

Voa Canarinho, Voa!




(Título sugerido por Leandro Tondin)


Casamento é algo sagrado no Brasil. Copa do Mundo também. E, às vezes, a mistura desses dois pode ser explosiva.

Quinta-feira, 14 de julho. Casamento de Adele e Jônas.

- Ai, Adele, nem posso acreditar que você vai se casar em alguns minutos. Que emoção! Além do que, você vai perder sua virgindade hoje! Não é maravilhoso? Será que o Jonas está muito nervoso também?

- Ai, amiga, não faço idéia.

********

Quinta-feira, 14 de julho. Semifinal de Copa do Mundo. Brasil x Argentina.

- Caralho, Jônas, nem posso acreditar que vai se casar hoje. Que merda! Além do que, você vai perder o segundo tempo da porra do jogo! Não é uma foda? Será que a Adele não atrasa essa cerimônia?

- Quem? Vai Kaká! Acaba com esses argentinos de merda!!

*********

Meia-hora depois.

- Aceito!

- E você, Jonas dos Santos, aceita Adele Nogueira como sua legítima esposa?

- Ah! Não!

- Como assim "Não"?

Jonas percebe o murmurinho e a flição tomando conta da noiva e dos convidados.

- Desculpa, amor. É que foi pênalti para a Argentina.

- Jônas, não acredito que esteja ouvindo o jogo. É nosso casamento.

- Eu sei, amor. Mas é Brasil e Argentina. Copa do Mundo. Tá 1x0 pra gente.

- Me dá esse i-pod aqui!

**************

15 minutos depois:

Jonas e Adele, já casados, deixam a igreja de mãos dadas. Quando chegam à metade do caminho, um convidado grita impulsivamente:

- Pênalti pro Brasil!!! Caralho! 49 do segundo tempo!

Jônas larga a mão de Adele, mas a esposa o fulmina com os olhos e ele retorna cabisbaixo. Continuam a caminhada. Agora, lentamente. Jônas quer saber se foi gol. Quando estão quase na porta da igreja, o amigo grita:

- GOOOOOLLLL!!!! Tâmo na final!!!! De novo!!!! É Hexa! É Hexa!

Jônas larga a mão da esposa e vai pra galera. Abraça os amigos e sorri feliz da vida. ninguém acredita no que vê. Adele corre em direção ao carro, inteiro rasurado com "Recém-Casados". Tira o motorista do banco e sai a milhão. Levam alguns minutos para avisar Jônas, ainda extasiado com o resultado do jogo.

Encontraram Adele horas depois. Ainda vestida de noiva, apesar de grande parte do vestido já estar manchado de vermelho. Jogou-se de uma ponte qualquer. Jônas foi assolado pela culpa. Inanimado. Sem reação. Horas depois, no IML, o médico legista informou que, em função da Copa do Mundo, estava com a equipe reduzida. A autópsia demoraria um pouco para acontecer. O corpo estaria liberado para sepultamento no domingo. Então, Jônas desesperou-se. Era o dia da final.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A Sétima Página


Se Cláudio Cavalcanti tivesse tido como pai metade da competência que tivera como empresário, seus filhos, certamente, teriam sido as crianças mais felizes do mundo. Cláudio passara a infância submetido à rigidez militar do pai. Fora ensinado a manter-se sempre sério; brincadeiras, segundo ele, não passavam de perda de tempo e faziam parte de um inadimissível processo de "aparvalhamento do caráter". Nunca ganhara um brinquedo; apenas disciplina. Essa rigidez foi repassada aos filhos, através de uma educação severa e distante. Quando separou-se da esposa, então, as coisas ficaram muito piores. O afastamento deixou de ser apenas emocional, tornando-se físico também. Finais de semana com o pai eram coisa cada vez mais rara para a alegria dos quatro filhos - três homens e uma mulher - que preferiam as aulas de matemática às visitas à casa do pai.

Por isso, não era de se estranhar que nenhum deles tivesse despejado um rio de lágrimas durante o velório do pai. Na verdade, uma só lágrima já seria surpreendente. Os filhos sempre tiveram tudo do bom e do melhor - afinal, Cláudio, apesar de disciplinador, era bastante generoso -, menos a certeza de que o pai os amava. Na visão dos filhos, tudo que os envolvia parecia uma obrigação desagradável para ele. E nenhum dinheiro no mundo convenceria-os do contrário. Talvez por isso, a relação entre pai e filhos havia se transformado numa imensa geleira polar, intransponível até para o maior Navio-cargueiro.

Dez dias após o velório, procedeu-se a leitura do testamento de Cláudio. Os quatro filhos foram convocados para presenciar o ato legal, e descobrir como seria feita a divisão dos inúmeros bens materiais deixados pelo pai. Mansões, coberturas, casas de praia e de campo, imóveis comerciais, carros, ações da empresa, enfim, uma verdadeira fortuna.

Chegaram juntos ao escritório do advogado particular do pai. Dr. Robson era um homem visivelmente obeso e de uma simpatia singular. Fez questão de recepcioná-los pessoalmente e conduzi-los à sala onde daria início aos procedimentos legais. Quando os herdeiros adentraram a vasta sala de reuniões, assustaram-se com o número de pessoas presentes. Diversos homens e mulheres aguardavam em silêncio o início da leitura, e poucos deram qualquer importância à chegada dos quatro herdeiros. O filho mais velho questionou a necessidade de tantas pessoas e ouviu do advogado que ele apenas convocara aqueles indicados pelo falecido empresário.

A leitura foi iniciada e a primeira página do testamento apenas relatava os aspectos legais do ato, indicando quando e onde fora registrado, quais eram as testemunhas, etc. Enfim, um porre para qualquer um, ainda mais para quem já demonstrava sinais de impaciência. Só a partir do meio da segunda página é que as vontades do falecido foram reveladas. Os filhos ficaram estupefatos quando souberam das decisões finais do pai. Descobriram que todos os ali presentes eram amigos íntimos ou colegas de profissão por quem Cláudio tinha muito estima. Viram a casa de campo virar pó ao ser entregue ao amigo e companheiro de golfe. Deram adeus à casa de praia que havia sido oferecida ao obeso advogado que lia o testamento. Ficaram perplexos ao verem apartamentos, mansões, carros e tudo mais evaporando em uma divisão irracional que apenas os deixavam perplexos e boquiabertos.

Foi por volta da quinta página que o filho mais velho levantou-se em repulsa, criticando e colocando sob suspeitas aquela leitura a que se referia apenas como "uma indubitável farsa". Recusou-se a ouvir uma só palavra a mais e saiu brandindo a mão ameaçadoramente, enquanto cuspia impropérios cabulosos. A irmã, única mulher entre os quatro, mostrou-se ainda mais indelicada que o irmão, tentando, inclusive, agredir o simpático advogado, a quem se endereçava como "gordo de merda" e "poço de banha". Quando, já na sexta página, Dr. Robson relatou que somente metade das ações iriam para os herdeiros, o caçula levantou-se calmamente da cadeira, aprumou-se com arrogância e frieza, e encarando os outros convidados disse para que não comemorassem muito, pois esse testamento não continha validade legal alguma. Prometeu anulá-lo e depois retirou-se tranquilamente da sala de reuniões.

Dos quatro, apenas Lucas manteve-se imóvel na cadeira. Não estava gostando daquilo, mas, sinceramente, estava pouco preocupado com quem ficaria com o que. Dr. Robson, num tom defensivo, perguntou ao rapaz se ele também não iria sair. Lucas, apoiou os cotovelos na mesa e respondeu:

- Não vim aqui pelo dinheiro, nem pelos bens materiais. Estou aqui somente em respeito à memória do meu pai. E se ele acha que essas pessoas são merecedoras do que estão recebendo, quem sou eu para criticá-lo. Só Deus sabe que EU, com certeza, não fiz por merecer. Sim, ele poderia ter sido um melhor pai, mas, com certeza, eu também poderia ter sido um melhor filho. Mais presente e compreensivo. Prossiga, Dr. Robson. Respeitarei as vontades dele.

Assim que terminou de falar, Dr. Robson abriu um largo sorriso e Lucas viu todas as pessoas da sala encarando-o com um ar leve e receptivo. O obeso advogado ergueu-se da cadeira com dificuldade, virando a página do testamento enquanto olhava para o herdeiro.

- Ele sempre soube que seria você. Fico feliz que meu amigo tenha acertado.

Lucas só entendeu a frase quando o advogado deu início à leitura da sétima e última página do testamento. Aquilo tudo havia sido um mero teatro, e todos aqueles na sala eram somente atores contratados. Pelas leis brasileiras, Cláudio era obrigado a deixar tudo para seus filhos - nunca mais se casara novamente - e aquelas baboseiras não tinham o menor validade. Quando seu irmão deixou a sala avisando que nada daquilo tinha valor legal, estava com toda a razão. Cada um dos quatro ficaria com 25% da herança, sendo que os imóveis e carros seriam vendidos e partilhados em quatro partes iguais. Mas Cláudio havia reservado, ainda, uma última surpresa.

Dr. Robson dirigiu-se ao armário que ficava atrás da cabeceira da mesa e abriu uma das gavetas. Lá dentro havia quatro fitas VHS, cada uma com o nome de um dos filhos escritos em uma fita crepe já desgastada. O advogado pegou somente a que tinha o nome de Lucas. Depois queimaria as outras, seguindo instruções do falecido amigo. Colocou a fita dentro do vídeo-cassete e pediu a todos que se retirassem. Apertou o PLAY e deixou Lucas sozinho na sala. Quando o pai apareceu na tela, o rapaz desabou em emoção. Cláudio começou relatando que acabara de descobrir sobre o câncer fulminante e o medo que tinha da morte. Mas disse que seu maior medo era deixar esse mundo sem que pudesse dizer ao filho o quanto o amava de verdade. Foram os cinco minutos mais emocionantes na vida de Lucas. Pela primeira vez, em toda sua vida, viu o pai chorando, totalmente entregue aos sentimentos. Uma imagem que ficaria eternizada em suas lembranças. Sim, o pai o amava. Do jeito dele, mas amava. Sentiu-se libertado. Livre de uma terrível culpa que aflige aqueles que não sabem onde ou quando erraram. Nenhum outro legado poderia ser mais maravilhoso. Pausou o sorriso do pai na tela e seguiu até o monitor. Acariciou o rosto do pai, como se ele estivesse ali à sua frente, em carne e osso. Ajoelhou-se dominado por um choro que misturava culpa e alívio.

Lucas deixou aquela sala como um milionário, mas o dinheiro do pai era a última coisa que passava pela sua cabeça.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O Homem que Morria de Medo de Aniversários


Pietro tinha 11 anos quando assistiu, numa sexta-feira 13, uma reportagem mórbida sobre pessoas que morriam no dia de seus aniversários ou datas importantes do calendário anual, enfim, infelizes coincidências que, segundo a reportagem, aconteciam com mais frequência do que poderíamos imaginar (não que alguém fosse perder tempo pensando numa coisa dessas). Ainda assim, a matéria sugeria que essas datas eram os momentos em que mais deveríamos nos precaver para evitar acidentes ou imprevistos, ou seja, uma tremenda baboseira de quem não tinha nada melhor para colocar no ar, mas suficientemente marcante para impactar uma criança.

Isso, somado ao falecimento do tio no dia do aniversário do avô, na semana seguinte à matéria, causou danos irreversíveis no pequeno garoto, fazendo-o mudar radicalmente de hábitos e perdendo inúmeros eventos. Não comemorava mais seu aniversário. Nunca. Nem mesmo saía para fora de casa. Tudo para evitar o pior. Nas festinhas dos amigos, então, virou ausência certa. Alguns nem o convidavam mais. Com o tempo, foi perdendo a amizade de todos e se distanciando em um mundo cercado de medo e angústia.

Virou um adulto solitário, desconfiado, recluso. Amigos? Não os tinha desde a escola. Na faculdade fora mero figurante. Um daqueles caras misteriosos que chegam e vão embora desapercebidos. Namoradas? De jeito maneira! Elas eram as que mais gostavam de celebrar essas datas amaldiçoadas. Aniversário dela, dele, de namoro, noivado, dia dos namorados, uma algazarra de datas e comemorações que tornavam a vida uma perigosa corda bamba. Família? Bom, não tinha irmãos ou irmãs, o pai morrera quando ainda era pequeno e a mãe morava longe. Só tinha tempo de vê-la nas datas comemorativas. Justo nelas. Não ia. Escrevia um cartão (a mãe odiava a internet) ou dava um telefonema seco. Possuía umas duas dúzias de primos, mas se não ia visitar a mãe, eles muito menos. Só assim sua vida era segura e mantida sob-controle. Essa era a escolha que tinha feito.

Pietro morreu do coração, aos 26 anos, vítima de de um infarto causado pelo excesso de peso e sedentarismo. Não saía mais de casa. Só para trabalhar. Morreu num 28 de abril. Só acharam seu corpo quatro dias depois. De importante na data? Nada. Só a comemoração do Dia da Sogra, que, por sinal, ele nem tinha.




Mensagem: O medo é uma prisão de vidro que precisa ser quebrada todos os dias para que não nos sufoque.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Até Papai Noel Tira Férias de Vez em Quando


O auditório estava lotado de pessoas que haviam se inscrito para assistir ao talk-show. Todos aplaudiram de pé a entrada do famoso apresentador franzino e elegante. Ele fez algumas brincadeiras com a platéia e, depois, anunciou seu convidado da noite:

- Ele largou a vida de executivo bem sucedido para virar dono de pastelaria, ganhando, hoje, dez vezes menos o salário anterior. Nós vamos falar com o Sr. Odimar Lopes.

A platéia, apesar do espanto e das risadinhas paralelas, aplaudiu o homem como era de praxe naquele programa, mas a verdade era que os risos serviam com uma máscara que escondia as chacotas e pré-julgamentos de todos que lá estavam. Seria difícil entender o que teria levado um homem culto e educado a fazer uma escolha tão infeliz. Odimar caminhou até o apresentador apertando sua mão com firmeza e sentou-se no sofá, encarando, pela primeira vez, as dezenas de "juízes" afoitos para proferir a sentença que o condenaria. Voltou os olhos ao franzino apresentador quando ele começou a falar:

- Odimar, quando soube do seu caso, eu pensei em como poderíamos iniciar essa nossa entrevista de hoje, porém, é impossível fugir de uma pergunta simples e direta: Por que essa mudança tão radical?

Odimar abriu um leve sorriso. Já havia ouvido essa pergunta milhares de vezes. Tantas, que já tinha desenvolvido uma resposta intrigante que deixava todos perplexos.

- Simples. Porque até Papai Noel tira férias de vez em quando.

A platéia riu sem entender bem a razão. Talvez aquele senhor fosse louco. Um maluco saído do manicômio direto para ali. O apresentador fez uma cara de surpresa, deixando claras as dúvidas de que conversar com aquele homem teria sido a melhor escolha. Tinha a opção de conhecer a estória da mulher que ensinara um pequeno urso selvagem a escrever nossa língua, para estar ali com Odimar. Alguém na sua produção pagaria caro por isso. Odimar, vendo a cara de interrogação do homem à sua frente, antecipou-se na explicação.

- Parece loucura mas não é. Deixe-me explicar. Alguns anos atrás, meu filho, ainda com sete anos, veio passar o natal comigo. Havia me separado da minha ex-esposa quando ele tinha dois anos de idade, e queria participar mais da vida dele. trabalhava muito e pouco o via. Quando a gente se encontrava, normalmente o encontro era interrompido por algum problema profissional urgente. Perdia aniversários, páscoas, natais, feriados, tudo. Resolvi que precisava ficar mais com ele, e pedi a minha ex-esposa que me deixasse passar o natal com nosso filho naquele ano. Ela relutou, mas cedeu. Sabia qual seria o desejo de Saulo. Levou o garoto até a casa dos avós, meus pais, pois seria lá a ceia. Claro que tive uma série de imprevistos de última hora para resolver, e acabei chegando tarde para vê-lo. Alguns minutos depois, na hora dos presentes, lembrei que havia esquecido completamente de lhe comprar algo. Na minha família, nunca tivemos a tradição de trocar presentes no Natal. Quando ele veio me perguntar onde estava Papai Noel, respondi que ele havia tirado férias, por isso não tinha aparecido. Só alguns meses depois, ao ter que cancelar uma pequena viagem que faríamos juntos por causa do trabalho, percebi como o que eu havia lhe dito, tinha causado enorme impacto. E quando ele me disse: "Pôxa, papai, se até Papai Noel sai de férias de vez em quando, por que você não pode?". Não sei dizer a razão, mas aquela frase me remoeu por dentro e transformou a minha vida.

As pessoas da platéia já começavam a olhar com um pouco mais de respeito para o entrevistado. Não esperavam uma resposta como aquela. De forma alguma. O silêncio era revelador, e só foi quebrado por uma nova pergunta.

- E como surgiu a idéia da pastelaria?

- Simplesmente aconteceu. Tinha uma bela grana guardada e vi essa pastelaria sendo vendida do lado de casa. Queria tempo para poder ficar com meu filho e achei que a pastelaria seria algo que não exigiria muito. Conversei com minha ex-esposa sobre isso, e ela achou uma boa. Queria que o Saulo participasse desde o começo. A empolgação dele era cativante. Ele me pediu para trabalhar lá comigo. Antes que eu pudesse responder, ele já antecipou que trabalharia de graça. Achava que pagar um salário para ele seria um empecilho para mim. "Estar com você já é meu pagamento", ele me disse. Nem entendeu quando eu caí em lágrimas. Não fazia a menor idéia de como essa frase eliminou qualquer dúvida sobre a decisão de abandonar tudo. A presença dele era meu combustível. Viramos unha e carne. Era delicioso ver o prazer com que servia os clientes.

Algumas pessoas no auditório já começavam a chorar. Aquela era uma senhora estória de vida. Um verdadeiro exemplo de amor incondicional.

- E é verdade que você e sua esposa voltaram a ficar juntos?

- É sim. A minha aproximação com Saulo, acabou me reaproximando da minha ex-mulher. Com o tempo, começamos a nos entender e um belo dia, quando percebemos, havíamos tido uma recaída. Ela largou o trabalho também, e passou a trabalhar na pastelaria. Foi dela a idéia de começarmos a fazer aniversários infantis regados a pastel. Ela é a mulher da minha vida. - os olhos de Odimar ficaram marejados de emoção, mas ele seguiu forte. - Voltamos como um namorico entre adolescentes e hoje estamos morando juntos de novo.

- E vocês ainda têm a pastelaria? O que estão fazendo da vida?

- Então, nós já repassamos o ponto para uma rede de drogarias. Era bastante trabalho e pouco lucro. Meu filho, em uma das festas que fizemos, conheceu um garoto de quem ficou amigo. O garoto adorava jogar tênis e o Saulo entrou na dança. Isso faz, mais ou menos, uns seis anos. Hoje, o Saulo é considerado a maior promessa do esporte no Brasil, e eu o acompanho nos torneios que disputa por todo país e América Latina. Sou uma espécie de manager. Na verdade, trabalho para ele. Hoje, meu filho é meu patrão. Dá pra acreditar? - A pergunta irônica arrancou algumas simpáticas gargalhadas do público.

- Bom, Odimar, infelizmente nosso tempo acabou, mas eu queria agradecer imensamente sua presença e parabenizá-lo pela escolha.

- Eu que agradeço o convite. Só queria dizer uma última coisa aos pais de todo nosso país: Não podemos esquecer que nosso verdadeiro sonho, são nossos filhos. E o maior presente que podemos dar a eles, é estarmos presente.

Quando Odimar se levantou, a platéia o ovacionou em pé. Ninguém mais estava rindo dele, agora, apenas riam para ele. Achavam-no um iluminado. Um exemplo. Os olhos das mulheres brilhavam com tamanha intensidade que, fosse ele solteiro, sairia casado dali.

Deixou o auditório com a platéia ainda em pé, reverenciando o homem que fez aquilo que muitos de nós queremos, mas nunca teremos coragem de fazer.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Lápis e Borracha


A mulher esperava impassível em cima do palco do anfiteatro, enquanto observava as pessoas se acomodando em assentos distantes umas das outras. Era interessante observar como o ser humano, em geral, comportava-se defensivamente ao adentrar um território desconhecido. Pelos seus cálculos, a palestra que daria sobre Educação na Infância e na Adolescência seria ouvida por um pouco menos da metade da capacidade total do espaço, o que era uma vitória para um domingo ensolarado como aquele. Esperou mais cinco minutos, até que pediu para um dos organizadores que trancasse a porta do anfiteatro. A partir dali, ninguém mais entrava ou saía. Arrumou o microfone postado à sua frente e começou a falar:

- Bom dia a todos! - ouviu algumas tímidas retribuições e prosseguiu - Em primeiro lugar, gostaria de agradecer imensamente a todos vocês que consideraram essa palestra interessante o suficiente para privá-los de uma manhã ensolarada como essa. - O público, na maioria mulheres que trabalhavam como educadoras ou professoras em escolas infantis, riu de leve com a veracidade do comentário feito pela palestrante.

Então, a mulher continuou:

- Meu nome é Cassiopéia Resende e sou formada em psicologia pela USP, com Pós-Graduação em Educação infantil pela PUC e MBA em Comportamento Juvenil pela Faculdade de Yenkton, em Boston, EUA. Já trabalho nessa área há alguns anos, e discutiremos muitos assuntos interessantes ao longo das próximas horas, mas gostaria de iniciar esse bate-papo falando com vocês sobre uma teoria que elaborei após ter contato com uma mãe desesperada, anos atrás. É a Teoria do Lápis e Borracha. - As pessoas fizeram cara de espanto ao ouvir o nome proferido pela Doutora, mas a concentração e o interesse estavam ainda bastante aguçados , o que fez com que ninguém se manifestasse.

- Bom, meus caros, essa mãe em questão tinha mania de sempre fazer vistas grossas para tudo que o filho fazia de errado. Desde criança. O filho fazia alguma besteira, e lá estava ela para consertar, e pior de tudo, agir como se nada tivesse acontecido. O filho fazia, ela consertava e depois esquecia. Ele escrevia, ela apagava. Ele era o lápis e ela, a borracha. Pois então, o que começou como peraltice de criança, passou a vandalismo na adolescência. As atitudes do garoto eram sempre apagadas pela mãe, dando a ele uma sensação de impunidade vista somente naqueles com algum tipo de deficiência mental. Tudo podia ser consertado. Tudo podia ser apagado, esquecido, banido para todo o sempre. Nunca sofreria com as consequências de seus atos. Más companhias, drogas, falta de senso social eram coisas presentes no dia-a-dia daquele adolescente perdido. Até o dia em que a vida cobrou dele o primeiro pedágio, e após uma noite de farra e muito álcool, o moleque inconsequente atropelou uma menina de 7 anos de idade. Ele ficou preso nas ferragens, tendo de encarar o corpo esmagado da garota imprensada contra o muro, até que fosse retirado do carro. O rapaz foi preso em flagrante, e hoje cumpre uma pena de 8 anos de prisão. E a lição principal que essa mãe teve, é que, às vezes, algumas coisas são escritas à caneta, e não podem ser apagadas. É sobre exatamente isso, muito do que eu vou falar com vocês durante o dia de hoje. - disse, finalizando sua bem-sucedida introdução.

As pessoas ficaram chocadas quando ouviram aquela estória. Quem nunca havia errado daquela maneira, talvez não tão intensamente como a mãe ali citada, mas na mesma forma que ela. Cassiopéia percebeu a platéia intrigada e sedenta por mais conhecimento ou novos causos. Queriam aprender a entender os jovens e confiavam que aquela mulher em cima do palco os ajudaria nessa jornada. O resto da palestra da psicóloga foi um estrondoso sucesso. Conhecimentos, exemplos, experiências, até confidências foram trocadas durante a palestra, que, após o coffe break, já via as pessoas sentadas umas ao lado das outras, bem próximo à palestrante.

As horas passaram como se fossem minutos, e ao final do evento, ninguém mais pensava sobre o sol que fazia no lado de fora. Quando terminou seu discurso final, Dra. Cassiopéia foi ovacionada em pé pelos quase 50 espectadores. Sentiu-se extremamente lisonjeada e feliz. Havia conseguido passar sua mensagem, e quem sabe, ajudado a plantar uma semente naquele jardim que chamamos de educação. Depois de mais alguns minutos de um bate-papo informal, a psicóloga deixou o anfiteatro, indo até a entrada da Universidade. Estava atrasada para um compromisso, e o sorriso deu lugar a um leve ar de preocupação. Não tinha ido de carro - não gostava muito de dirigir -, e não teve problema para encontrar um táxi. Quando ia entrar no automóvel, ouviu seu nome sendo chamado:

- Dra. Cassiopéia, a senhora tá indo pra onde? - era um dos poucos homens que estiveram em sua palestra. Ficou sem graça, pois nem se lembrava do nome do sujeito.

- Pro meu consultório. Tenho algumas coisas agendadas.

- Quer uma carona?

- Não precisa, meu caro. Tenho que fazer algumas coisas antes, mas lhe agradeço mesmo assim.

- Imagina. Não por isso! Até logo.

O homem se despediu entrando no Pálio preto. Cassiopéia sentou-se no banco de trás do táxi Meriva e pediu que o homem seguisse em frente.

- Para onde vamos, senhora?

- Cadeião de Pinheiros. - respondeu, sentindo logo depois os olhos do homem observá-la pelo espelhinho retrovisor.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

A Encruzilhada


A boca seca já começava a transparecer algumas feridas que ardiam quando tocadas pelo suor que escorria pelo rosto. A pele era invadida impiedosamente pelo sol, deixando marcas dolorosas e indesejadas. O homem aparentava pouco mais de vinte anos de idade, e já havia perdido a conta de quantas horas andava sob o sol escaldante.

Na verdade, o rapaz não se lembrava de nada, nem mesmo seu nome. Não sabia como havia terminado ali ou por qual razão acordara jogado em meio a um amontoado de pedras duras e extremamente desconfortáveis. As únicas coisas das quais tinha certeza era o fato de estar completamente perdido no meio de um deserto desconhecido, e da inexistência de um mísero local que o impedisse de ser cozinhado pelo sol.

Foram horas e horas perambulando sem direção na esperança de encontrar alguém ou algum lugar que pudesse lhe servir de abrigo, até que avistasse ao longe uma belíssima e imponente árvore. À primeira vista, tinha a impressão de estar de frente a um gigantesco bonsai com o tronco torto pendendo para a direita e a copa com o formato de um enorme guarda-chuva. Por isso estranhou quando viu debaixo dele um senhor que nada tinha de oriental, pelo contrário, tinha apele morena e uma longa barba branca crespa que contrastava com a total ausência de cabelos. Tivesse que adivinhar sua origem, provavelmente diria que o homem todo de branco era indiano.

Assim que se aproximou da árvore, viu o homem indo em sua direção. Pela feição dele, podia sentir que sua presença era bem-vinda. Aos pés do gigantesco bonsai a estrada se dividia em dois caminhos distintos. À esquerda, ela era totalmente plana, e um pouco mais à frente era possível ver algo que dali parecia ser um pequeno aglomerado de coqueiros. O outro caminho era uma estrada sinuosa que levava direto à parede de um colossal canyon que, provavelmente, demoraria horas para ser escalado. Enquanto o rapaz observava a altura da garganta rochosa, o velho começou a falar:

- Bom dia, meu jovem. O que faz você em um lugar como esses? – o homem havia juntado as palmas da mão com os dedos apontando para céu.

- Não faço a menor idéia, velho. Na verdade não me recordo de nada, nem do meu nome; a única coisa que sei é que eu não sei de nada. – O rapaz soltou um leve sorriso quando percebeu o tom filosófico contido em sua resposta.

O senhor de branco aproximou-se ainda mais, tocando as duas mãos na cabeça do rapaz sem nome. Seus olhos tremelicaram por alguns segundos, só parando no momento em que voltou a falar:

- Sua alma está em conflito, filho. Posso sentir. É por isso que está aqui.

- Não entendo, velho. Que tipo de conflito?

- Isso, meu jovem, só você é capaz de responder.

- E como eu deveria fazer isso, se nem ao menos meu nome eu lembro? – Um tom impaciente foi despejado na direção do ancião sem constrangimento algum.

- Nomes aqui são insignificantes, meu rapaz. Não são eles que nos definem, mas sim nossa alma. Se você está aqui, agora, é porque sua alma enfrenta um dilema na sua própria essência, e esse será o momento que irá definir quem você vai ser pelo resto de sua vida; independentemente dequal seja seu nome.

- Um papo um tanto quanto insano, não acha velho? – perguntou o jovem girando o dedo indicador na altura da têmpora, fazendo sinal que demonstrava o quanto achava aquela conversa uma maluquice completa.

- A própria sanidade contém fragmentos de loucura, meu garoto. Tudo depende da nossa boa vontade e de nossos preconceitos. – o senhor voltou a juntas as palmas das mãos como se fizesse uma reverência a alguma entidade espiritual.

- Êta conversa de doido, meu Deus do Céu!Mas, tudo bem, velho, vou jogar seu joguinho. O que tenho que fazer, então?

O velho olhou para o jovem e meneou positivamente a cabeça. Girou lentamente o corpo e partiu em direção à árvore. Os passos eram firmes, apesar de lentos. Andava com cuidado, porém não demonstrava a comum fragilidade presente nos idosos. Era imponente, altaneiro. Quando chegou à imensa sombra em forma de guarda-chuva criada pela copa da árvore, virou-se de frente para o rapaz e disse:

- A única coisa que você tem a fazer é escolher seu caminho. – afirmou o homem da barba grisalha, enquanto abria os braços apontando na direção dos dois caminhos disponíveis. – Nem mais, nem menos.

O rapaz sem nome achou tudo aquilo muito estranho. Não havia muito o que discutir sobre esse assunto. Um caminho era plano, o outro sinuoso e montanhoso. Em um caminho podia-se ver a recompensa próxima, com os inúmeros coqueiros torneando o que parecia ser um lago, que poderia se encarregar de matar sua sede e limpar alguns de seus ferimentos; o outro, só mostrava uma íngreme parede rochosa e nada mais. Realmente, não havia muito o que pensar. Se tudo que tinha a fazer era escolher seu caminho, a tarefa já estava feita. Iria pelo caminho mais fácil. Iria pela esquerda.

- Você está certo da sua decisão? – disse o velho quando o homem à sua frente seguiu para o caminho escolhido.

- Mais certo impossível. – respondeu o garoto com seriedade.

O ancião passou as mãos no rosto, e pendeu o pescoço para ambos os lados, como se quisesse se livrar de um incômodo torcicolo. Sentou-se no banquinho circular postado ao lado do tronco do gigantesco bonsai e fez uma nova pergunta:

- Se não for pedir demais, posso saber a razão dessa sua decisão?

- Ora, velho, isso é mais do que óbvio. Estou cansado, com sede e machucado. Preciso de água e descanso para recompor minhas forças e tentar arranjar uma forma de sair daqui. Você me diz que minha alma está em conflito, e quanto a isso eu não posso me manifestar, pois ainda não decidi se te acho um sábio ou um louco. A única coisa que decidi é que não quero enfrentar aquela escalada.

O rapaz apontou para cima e os olhos do ancião acompanharam seu dedo indicador. Realmente aquela era uma subida e tanto. O desânimo era inevitável, mas, apesar da decisão tomada, o garoto continuava a se explicar:

- Se seguir por aqui – disse o jovem apontando para o caminho plano – vou ter muito menos esforço que seguir pelo outro lado. Além do mais, posso ver que um pouco mais à frente há uma grande quantidade de coqueiros que me ajudariam, por exemplo, a matar minha sede. Estou esgotado, com minhas forças minadas. Tenho que tomar o caminho mais fácil.

O ancião aproximou-se do rapaz, colocando uma de suas mãos sobre seu ombro. O ar de resignação presente em seu rosto fez com que o jovem aceitasse aquela aproximação com naturalidade. Trouxe seu lábio junto ao ouvido do outro e cochichou algumas poucas palavras.

- Quem disse que aquilo que vemos é, de fato, real? Ou que o caminho aparentemente mais fácil, um pouco mais à frente, não nos revele novos e mais terríveis obstáculos?

O garoto franziu a sobrancelha demonstrando surpresa com as perguntas feitas. Será que aquele velho sabia de alguma coisa? Talvez fosse melhor mudar de idéia e seguir em direção à garganta rochosa. Mas, e se o velho fosse um louco? Afinal, aquela subida, além de cansativa, era sobretudo perigosa, ainda mais para alguém tão esgotado fisicamente quanto ele. A decisão parecia girar em torno da figura daquele senhor barbado. Louco ou Sábio? Direita ou esquerda? Suas dúvidas foram deixadas de lado, assim que o ancião voltou a falar:

- Não se esqueça, caro rapaz, que desertos são traiçoeiros, ardilosos. Mexem com nossa cabeça, criando fantasias e imagens, e transformando verdades. Dá vida ao inexistente, e expurga a realidade. Quem garante que aqueles coqueiros sejam realmente o que aparentam ser? Quem lhe garante que eu não seja apenas uma ilusão tentando lhe confundir? Quem lhe garante que qualquer coisa aqui seja verdadeira? E quem garante que não? As escolhas que enfrentamos durante nossa breve passagem em vida são sempre extremamente complexas e trabalhosas, e, aqui, isso não haveria de ser diferente. Não há certo ou errado, apenas esquerda ou direita. E suas respectivas conseqüências.

Essas últimas palavras martelaram a cabeça do rapaz por algum tempo. Quais seriam as conseqüências caso fizesse a escolha errada? Mas o velho acabara de dizer que não havia certo ou errado. Então, qual seria o problema de seguir pelo caminho mais fácil? O rapaz ajoelhou-se no chão como se pedisse ajuda divina. Repensou tudo que lhe fora dito por aquele homem de aspecto indiano e longa barba branca, amarelada pela nicotina. De todas as falas que reprisava em sua cabeça, uma em especial, agora chamava sua atenção. “Os desertos são traiçoeiros, ardilosos”, era a única coisa com a qual se familiarizava. Qualquer um já havia ouvido falar em como as pessoas eram afetadas pelo deserto quando ficavam à sua mercê durante muito tempo. Quem nunca ouvira falar dos “oásis”? Um louco não refletiria daquela maneira. O velho, então, só poderia ser um sábio. Antes que pudesse notar, o garoto já havia ultrapassado a linha da direita, e seguido rumo ao suntuoso canyon.

Olhou para trás depois de alguns metros e viu o velho sorrindo em sua direção. Foi a certeza de que tinha feito a escolha certa. Viu, então, o ancião apontar na direção dos coqueiros, que agora estranhamente pareciam se movimentar. Poucos segundos depois, observou que as árvores pareciam de plástico, tamanha era a facilidade com que eram levadas por uma estridente manada de elefantes. Tivesse ele escolhido aquele caminho, o obstáculo a ser transposto seria muito mais perigoso. Como era sábio aquele velho! Sua sabedoria havia salvado sua vida. Era como se aquele senhor parado bem na sua frente, fosse uma espécie de anjo da guarda... Peraí! Um anjo da guarda faria perfeito sentido. Uma nova dúvida dominou a cabeça do rapaz... e ele precisava descobrir a resposta.

- Velho, posso parecer um tanto bizarro ao lhe perguntar uma coisa dessas, mas você é algum tipo excêntrico de anjo? – disse sem medo de ter soado ridículo.

O senhor de branco abriu um leve sorriso indecifrável. Levou a mão até a nuca, coçando-a brevemente, como se pensasse na melhor maneira de responder àquela pergunta. Finalmente, olhou na direção do rapaz e respondeu:

- Não, meu caro. Não sou isso não. Já lhe disse que aqui nomes e definições não tem valor. Mas, se precisar batizar-me de algo, chama-me de consciência.

Assim que proferiu a última palavra, o ancião pareceu entrar em um estado de transe total. O pescoço foi assolado por fortes espasmos que davam a impressão de tê-lo quebrado por completo. O corpo começou a tremer tão intensamente quanto a terra atingida por um poderoso terremoto. Suas formas foram mudando, o rosto ficando desfigurado e a pele espremendo-se e esticando-se como se fosse feita de borracha. Do corpo brotaram longas asas cinza-avermelhadas; no rosto, um longo bico negro surgiu majestoso e soberano. Em volta de todo corpo, acendeu-se uma chama escaldante capaz de derreter o mais sólido dos metais. Era o fogo que fazia ressurgir a vida. Era a chama do renascimento. Então, o pássaro brilhante como a lava vulcânica, voou na direção do rapaz que o observava, passando rasante pelo corpo ainda petrificado pela surpresa.

*********************

Toreiro voltou a si quando quase teve seu rosto atingido por uma pomba que havia passado muito perto do seu abundante nariz. Sentia-se pesado como alguém que tivesse acabado de acordar de um coma profundo. A mão direita segurava uma pistola Glock 9 milímetros, que supostamente seria de uso exclusivo da Polícia Federal no Brasil. Ao seu lado estavam vários comparsas e colegas de tráfico no morro. Dendê, Neneco, Jazadi, Kalunga e alguns outros companheiros de ilegalidade. À sua frente, enfrentando o gélido encarar do cano da sua arma, estava um policial militar capturado durante uma batida no morro. A incursão tinha como objetivo prender a liderança do tráfico local, e Toreiro era reconhecidamente um líder do crime. Agora, o caçador havia virado caça, e o jovem policial via sua vida nas mãos de um cruel assassino.

Só que enquanto observava o policial chorando dominado pelo desespero, Toreiro sentiu que algo de diferente dentro dele. Era como se percebesse o que havia de errado com aquela cena, e algo o impedisse de atirar friamente naquele homem. Nunca havia sentido nada igual. Sempre fora impulsivo e impiedoso, mas agora era invadido por uma culpa sem tamanho e sem procedência. Não entendia o que estava acontecendo. Talvez tivesse atingido seu limite de mortes; talvez matar aquele policial fosse a gota d água para ele, como se entrasse em um caminho sem volta. Com a culpa, veio uma paz indescritível, e uma certeza de que tinha que dar outro rumo na vida. Sim, aquele policial viveria pra contar essa estória. Abaixou a arma e colocou-a na cintura.

- Deixa esse porco ir embora! – ordenou com firmeza.

Os olhos dos companheiros arregalaram-se em espanto. Não acreditavam no que tinham ouvido. Deixar aquele policial ir embora seria suicídio para todos eles. O cara tinha visto o rosto de todos, e havia passado por locais que serviam como esconderijos para os traficantes. Se descesse vivo, certamente passaria a letra para todos os outros lá embaixo, e aí o chumbo ia voltar quente e grosso para o lado deles. Kalunga, o segundo no comando, questionou o líder:

- Você tá noiado? Pirou de vez? Assim que esse gambé chegar no asfalto, ele vai passa a fita de tudo aqui no morro!

- Eu sei disso, pôrra! Mas já tomei minha decisão. O porco vai viver.

- Caralho, Toreiro, que que cê ta fazendo, mano?

Toreiro olhou para o amigo de tráfico, abriu um leve sorriso e respondeu algo que apenas ele poderia entender:

- Tô subindo a montanha, mano. Tô subindo a filha da puta da montanha!

Assim que terminou de falar, virou-se e seguiu uma lenta caminhada para longe dali. O silêncio dominou o ar por alguns segundos. Podia-se ouvir os cérebros tentando digerir aquelas misteriosas palavras. Ninguém havia entendido nada. De repente, o silêncio foi quebrado pelo estralar de um tiro. Toreiro nem precisou olhar para trás para saber que o policial estava morto. Fechou os olhos, sabendo que seria o próximo. Logo, logo, estaria morto, mas nunca havia se sentido tão livre quanto naquele momento.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Herói do Novo Século


Nova Odessa, 4 de abril de 2009. 14h28min.


Uma multidão se aglomerava em volta do palanque montado às pressas com aço e madeirit cobertos por uma lona plástica branca. Em cima dele dezenas de pessoas se apertavam tentando aparecer no evento que seria televisionado por uma emissora local, filiada a um grande conglomerado televisivo. No centro, pairava tranquilo a figura do prefeito da cidade, que claramente vira naquela homenagem uma oportunidade eleitoreira.

À frente do palco repousavam algumas dezenas de cadeiras separadas do resto da multidão por um cordão de isolamento, além de alguns poucos policiais. Sentado em uma dessas cadeiras estava o homenageado, Washington Lemos, um bombeiro de 27 anos de idade que dias atrás salvara duas meninas, uma de sete e outra de cinco anos, do afogamento certo após a casa delas ter sido inundada pela força de uma enchente nunca vista antes na região. Até aí, a atitude, apesar de nobre, era igual à de muitos outros bombeiros que arriscaram suas vidas ajudando as pessoas afetadas pela enchente, o que fez com que sua história sobrepujasse as outras foi o fato do resgate ter sido filmado pelo celular de um vizinho, trazendo ao público imagens chocantes em que Washington atravessava a correnteza com uma garota em cada braço, ficando inúmeras vezes submerso sem que nunca deixasse qualquer uma das duas afundar.

O vídeo invadiu os noticiários e as páginas das revistas, tornando o rapaz conhecido por todo país. A internet também serviu de ferramenta para proliferação do caso, e, em poucos dias, Washington havia se tornado uma celebridade instantânea. Programas de televisão entrevistaram-no, homenagearam-no, mostrando-o como exemplo de conduta e dedicação. Agora, chegara a vez da sua cidade natal prestar sua homenagem: receberia as chaves da cidade tornando-se um Grã-Cidadão Nova Odessense.

Antes que as chaves lhe fossem entregues, vários discursos foram proferidos por amigos e colegas de trabalho, que versavam sobre a honra e o orgulho de conviver com um homem tão correto e prestativo. Outros contaram estórias divertidas sobre o bombeiro-herói, dando um leve tom de informalidade à cerimônia. Tudo isso envolto por uma capa de autoprojeção criada pelos eloquentes discursos políticos cuspidos pelo prefeito da cidade.

Houve também o imprescindível toque emocional que se iniciou quando os organizadores trouxeram ao palco a esposa do bombeiro, que relatou, acanhadamente, o orgulho em dividir com Washington todos os momentos de sua vida. Depois, veio o Grand-Finale, com as duas envergonhadas meninas, usando lindos vestidinhos de renda, percorrendo o palanque com a enorme chave em mãos e entregando-a ao bombeiro, sem entenderem direito o significado de tudo aquilo. Sem dúvida alguma, esse momento foi a grande cereja do bolo cerimonial.

Após a cerimônia, a população passou a curtir um show com núsicos locais, enquanto Washington e a esposa foram receber algumas outras homenagens paralelas e responder algumas perguntas da imprensa. Só ao final da tarde, com o sol se pondo no horizonte, é que o casal pode retornar para casa. Lucineide parecia aflita para ir embora e suspirou em alívio quando entraram no fusquinha 69 do marido. Enfim, voltariam para casa.


Nova Odessa, 4 de abril de 2009. 18h44min.


Assim que desceram do carro, o rapaz foi cumprimentado por mais alguns vizinhos. Tinha realmente ficado famoso, pois acabara de mudar para a cidade e não conhecia praticamente ninguém. Agora era uma verdadeira celebridade. A esposa já não estava mais tão sorridente, talvez pelo cansaço, talvez por não gostar daquela nova realidade a que era submetida.

Assim que entraram na modesta casa de laje sem reboco, Lucineide mal conseguiu esperar o marido fechar a porta:

- Por favor, Washington, me dá a chave. - disse com rosto invadido por um súbito desespero.

- Calma, mulher. Fique tranquila. Daqui a pouco eu dou. Antes quero dar uma trepada gostosa. - o sorriso safado no rosto veio após uma leve piscadela em direção à esposa.

- Não! Não foi isso que combinamos! O acertado é que eu marcaria presença na sua cerimônia e assim que chegássemos em casa, você me daria a chave. - retrucou Lucilene indignada.

- E cumprirei minha palavra mulher, mas não antes de poder saciar minhas vontades. Sou homem, porra! Depois você reclama se eu pegar uma qualquer na rua. Onde já se viu isso? Vira envangélica e depois fica regulando essa mixaria, aí! Não se esqueça que agora que estou famoso, vai tá assim de mulher atrás de mim, ok? - disse ele, abrindo e fechando os dedos das mãos sinalizando a quantidade.

Então Lucilene resolveu ceder. Era melhor assim, afinal o marido era teimoso que só ele. Mais alguns minutos e estaria com a chave na mão. Não sentia mais prazer ao manter relações sexuais com ele, e apenas o fazia por puro medo. Washington não era essa flor que todo mundo parecia querer cheirar ultimamente, pelo contrário, era um homem maquiavélico e sádico, que a submetia aos mais variados tipos de torturas físicas e psicológicas sempre seguidas por ameaças de morte, caso o denunciasse. Até durante o ato sexual ele gostava de humilhá-la, fazendo-a colocar um travesseiro no rosto para que ele não tivesse que olhar para aquela "cara perebenta", como ele adorava dizer.

Para sua sorte, o marido sofria com um grave caso de ejaculação precoce, o que fazia o martírio muito mais suportável. Ao fim do "estupro consentido", como ela gostava de chamar, Lucilene pegou a chave e foi até uma pequena porta que ficava no chão da cozinha. Abriu-a e desceu os cinco degraus da improvisada escada de madeira. O local era uma espécie de porão, infestado pelo cheiro pútrido de fezes e urina. Não havia luz artificial no local, por isso a mulher teve que ascender um isqueiro para se locomover. Ao fundo, bem à sua direita, podia-se ver uma pequena jaula recheada por barras de ferro enferrujadas. Dentro da caixa, um menino, de mais ou menos onze anos de idade, deitava em posição fetal, chupando o dedo com tanta força, que o havia deixado em carne viva.

O garoto primeiramente assustou-se com a presença do vulto, recuando as costas até a parte de trás da jaula, porém, assim que reconheceu a mãe, começou a urrar alguns gemidos que misturavam alegria e sofrimento. A mãe abriu a porta da jaula, dando-lhe um forte abraço, enquanto o garoto, cada vez mais alto, gemia completamente entregue aos braços da mãe. Lucilene, ao perceber que os gemidos do filho aumentavam de volume cada vez mais, tentou acalmá-lo, mas, mesmo assim, não conseguiu impedir que o barulho irritasse o marido:

- Manda esse retardado calar a boca, Lucilene! - disse Washington enfiando a cara pela portilha no chão da cozinha.

- Já te falei que ele não é retardado, é autista. - a mulher respondeu rispidamente.

- Autista, retardado, mongolóide, é tudo a mesma merda! Manda ele calar a boca ou eu vou calar pra ele! - ameaçou, irritado, o homem.

Só que o garoto reconhecia e temia aquela voz grave. Quanto mais o padrasto falava, mais alto ele gemia. A mãe tentava de tudo para acalmá-lo, pois tinha consciência das possíveis conseqüências, mas o medo do menino era incontrolável. Quando Washington finalmente perdeu a paciência, desceu as escadas com um pedaço de pau na mão. Ameaçava partir no meio a cabeça do moleque, mas a mãe bravamente protegia o filho. À cada estocada, a dor de Lucilene era sobrepujada pelo alívio de ter evitado que o filho deficiente fosse agredido. Foram tantas pancadas que a mulher, certa hora, despencou no chão sem forças. O marido, então, jogou ambos dentro da jaula.

- Um dia eu vou te denunciar, seu filho da puta! - disse ela, enquanto ele subia as escadas.

- E quem vai acreditar nas palavras de uma evangélica alcoólatra, quando do outro lado quem fala é um grande herói nacional. - respondeu ironicamente.

- Não preciso de palavras. Eles vão acreditar nisso! - afirmou, levantando a blusa e mostrando a marca dos ferimentos.

- Pode ser, minha querida, mas não hoje. Não hoje. - finalizou o rapaz com desdém, fechando a portilha e deixando mãe e filho trancafiados em meio à total escuridão.


Nova Odessa, 5 de abril de 2009. 07h42min.


Washington saiu de casa atrasado, vestido com o uniforme de bombeiro. Seu fusca o esperava banhado pelo sereno matinal, limpo como uma carruagem real. O bombeiro surpreendeu-se quando foi abordado por inúmeras crianças pedindo autógrafo. Era novo no bairro e na cidade, e já era visto como exemplo. Depois da noite anterior e das ameaças da esposa, sabia que teria que se mudar dali em breve, entretanto, antes disso, aproveitaria aquela situação o máximo possível.

Enquanto tinha dificuldades para entrar no carro, completamente cercado pelas crianças, um senhor de aparentemente 60 anos, varria a calçada em frente ao portão de sua casa. Podia-se ver ainda, em alguns cantos, a sujeira que era resquício da enchente que fizera famoso o vizinho bombeiro. Parou o serviço por alguns segundos, fitando o herói cercado pelos pequenos fãs. Teve a concentração cortada por uma vizinha de corpo exuberante que se aproximou, fazendo uma pergunta:

- Esse é o tão aclamado herói de Nova Odessa?

- Sim senhora, minha jovem. Em carne e osso.

- Mais carne do que osso. E que carne suculenta, diga-se de passagem. - completou a mulher esquecendo-se por um segundo de que estava ao lado do velho.

- Sobre isso não posso opinar, minha jovem. - respondeu o velho rindo bem-humorado - só posso dizer que é um orgulho ter um cidadão desse morando em nossa humilde vizinhança.

- Eu que o diga, velho. Eu que o diga. - retrucou, soltando uma piscadela mal intencionada.

Ananias captou suas intenções na hora. Estava velho, mas ainda percebia quando uma mulher queimava em desejo por dentro. Sentiu uma certa inveja do grande herói, afinal aquela morena era um pedaço de mau caminho, mas sabia que estava velho demais para encarar um fogo no rabo daquele. Apenas suspirou e jogou, intencionalmente, um balde de água fria no tesão de Zuleica:

- Uma pena que ele seja casado. E fiel, além de tudo.

Zuleica entendeu o recado na hora. Seduzia homens com imensa facilidade, porém seus poderes eram obsoletos naqueles poucos que continuavam adeptos ao conceito da monogamia. Virou-se e voltou pra casa assim que o fusca conseguiu se desvencilhar das crianças do bairro.

- Mulher de sorte essa esposa dele. Mulher de muita sorte. - resmungou em inveja antes de sair.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Gemini


Era feriado na pequena cidade de Lopes. Aniversário da cidade. Isso fazia com que o contingente na delegacia ficasse limitado à Jéssica, uma policial novata, recém saída da academia. Esse era o preço pago pelos calouros - ainda mais quando esses vinham de outras cidades -, sacrificavam-se para que os mais experientes pudessem celebrar a ocasião com seus familiares. De qualquer modo, esse isolamento servia para que a policial mais fuçasse na internet do que resolvesse questões de ordem pública; cidade pequena já costuma ser pacata em dias normais, quando há festa então, chega a ser um verdadeiro marasmo.

Aproveitou a inércia total e decidiu ir ao banheiro. Já estava apertada há um certo tempo, mas o bate-papo pelo MSN estava agradável. Irritou-se quando ouviu o telefone tocar assim que abriu a porta do lavabo. O xixi teria que esperar um pouco mais.

- Delegacia da Cidade de Lopes, Boa noite. - falou educadamente.

Do outro lado surgiu uma voz inquieta, aflita, sussurrando em um tom que denunciava a proximidade com algum perigo.

- Eu preciso de ajuda... por favor... ele vai me matar... - relatou a voz em meio a respirações aceleradas.

Jéssica sentiu o coração palpitar inadvertidamente veloz, como se a adrenalina já começasse a ser produzida e espalhada pelo seu corpo. Inspirou fundo.

- Senhor, onde você se encontra?

- Não faço idéia... só sei que ele vai me matar... em breve.

- Quem irá matá-lo, senhor?

- Meu irmão. Ele está possuído.

Jéssica era novata tanto na profissão quanto na cidade, mas sabia que o universo de suspeitos havia despencado assombrosamente. Quantos irmãos gêmeos poderiam haver em uma cidade como Lopes? Um par, talvez dois. Quis pegar o outro telefone e ligar para o delegado Estevez, mas tinha pouco tempo para arrancar o máximo de informações possível daquela vítima. Tinha que fazer as perguntas certas.

- Senhor, qual o seu nome?

- Ah, meu Deus! Ele está voltando... ele está voltando! - sussurrou o homem desesperadamente.

- Senhor, você está amarrado?

- Não. Mas estou trancado num quarto. Está tudo meio escuro. Não consigo enxergar nada direito.

- Ótimo, senhor. Isso servirá a nosso favor. Vou lhe pedir um favor, e o senhor deverá fazer o que eu disser rapidamente, ok? Vou começar a rastrear sua ligação agora,certo? Mas preciso que você mantenha essa ligação por pelo menos mais 60 segundos. Tem algum lugar onde o senhor possa esconder seu aparelho?

A voz do homem em perigo ficou muda por alguns segundos. Jéssica concentrou-se tentando ouvir algum barulho que pudesse indicar ao menos a região de onde o sujeito estivesse falando. Já imaginava não ser um sub-solo, pois o sinal na região era ruim, e a ligação estava sem interferência alguma. Sua concentração foi quebrada pela voz do outro lado da linha.

- Pronto. Acho que encontrei um bom lugar. - comemorou o homem.

- Perfeito. Agora preciso que o senhor volte a ficar na posição em que estava quando seu agressor saiu, ok? Dessa forma, ele não levantará suspeitas sobre essa ligação. Tudo bem?

- Sim. - respondeu o homem com uma voz chorosa.

- Senhor, não se preocupe, eu o encontrarei.

- Tácio - disse a vítima -, me chame de Tácio.

Jéssica correu em direção ao servidor e conseguiu verificar que o homem se encontrava em Solene, um condado próximo da cidade de Lopes. Voltou ao telefone para fazer mais uma ou duas perguntas ao sujeito, mas lembrou-se de que ele já havia escondido o celular em algum lugar perto da onde estava; e se ele conseguisse ouvi-la, provavelmente também poderia o sequestrador. O jeito, agora, era esperar mais alguns segundos, até que o servidor lhe passasse a localização exata. Conseguia ouvir alguns poucos barulhos do outro lado da linha, mas pôde ouvir nitidamente a chegada do agressor. Assustou-se quando Tácio gritou apavorado após o ranger de uma porta. Não conseguia ver, mas podia sentir aquela presença diabólica através do rapaz aterrorizado. O agressor estava lá. Provavelmente fitando sua vítima, feito uma ave de rapina, sem que ela pudesse fazer nada para impedir tudo aquilo. Só então, conseguiu ouvir uma segunda voz através do telefone. Um timbre mais grave e sádico proferiu uma frase que gelou a espinha da policial: "Hora de pagar por seus pecados, irmãozinho querido".


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Rua Nempes, 68. Esse era o endereço, que apesar de fácil memorização, era olhado pela décima vez por Jéssica. Já dirigia a viatura a pouco mais de cinco minutos, enquanto tentava prestar atenção a qualquer movimentação sonora do outro lado da linha. Havia transferido a ligação para seu celular, e em alguns pontos o sinal era bloqueado por algumas interferências, mas precisava ficar atenta a qualquer pista que pudesse ser passada por qualquer um dos irmãos. Já não ouvia nada há alguns minutos, quando uma voz se manifestou com sadismo.

- Chegou sua hora, maninho querido. Mas antes, você vai sofrer um pouco. Precisa se purificar. E a verdadeira purificação só vem com a dor. Está vendo esse alicate? Hã? Pois então, ele está velho, surrado, enferrujado, mas servirá para arrancar... shshshshshshshshshshshs... a uma, assim como você fez com todas aquelas pessoas que me amavam. Uma a uma.

- Pelo amor de Deus! Não faça isso! Eu sou seu irmão... não faço idéia do que você está falando. Que pessoas são essas? Nunca fiz mal a ninguém. Não. Não. Por favor... Não. AHHHHHHHHHHHHHHHH!!!!

O grito liberado por Tácio quase fez com que Jéssica batesse a viatura, e isso só não aconteceu por não haver carro do outro lado da estrada de mão dupla. O coração da policial ficava apertado a cada berro, a cada grito de dor, enquanto podia notar alguns pequenos gemidos de satisfação na voz do torturador. Foram mais ou menos dez gritos no total. Dez longos pedidos de socorro aos quais não podia atender. Estava à caminho, mas temia chegar tarde demais. Do outro lado da linha, a conversa continuava.

- Por que você está fa... fazendo isso comi...go?

- Cale essa boca! Sempre uma menininha chorona. Esse castigo é merecido, e você sabe disso. - Jéssica ouviu um barulho estalado e agudo, como se alguém tivesse levado um tapa na cara, inspirou profundamente e continuou atenta - Isso é por todos os anos em que você me manteve preso, seu desgraçado!

- Preso? mas eu não sei do que -.

- Cale-se! Já disse! Ainda mais se for para falar imbecilidades como essa. Você sabe sim do que estou falando. Agora, tire a calça!

- Como vou fazer isso se você me amarrou quando voltou.

Jessica sentiu pelo tom de voz de Tácio, que essa havia sido uma informação direta para ela, do tipo: "Venha logo ou estou perdido". Acelerou o carro e voltou a se concentrar na ligação. O diálogo entre os irmãos continuava.

- Hehehe. Verdade. Deixa que eu mesmo tiro.

O apito do GPS de Jéssica voltou a quebrar sua concentração. O aparelho indicava que teria que virar à direita dali a pouco mais de dois quilometros. Depois, mais alguns poucos metros e estaria na Rua Nempes. Começou a acreditar que haveria tempo hábil para salvar Tácio. Passou a imaginar o que faria se colocasse suas mãos naquele torturador maldito, e as imagens não eram nada agradáveis. Já estava envolvida emocionalmente com a situação. Testemunhar uma tortura pelo telefone era uma possibilidade que nunca passara por sua cabeça - e, provavelmente, de ninguém! - ainda mais em uma cidade tão pequena quanto aquela.

Só aí, lembrou que esquecera de avisar o delegado sobre o que estava acontecendo, mas agora já era tarde para esperar por reforços, e teria que lidar com tudo aquilo sozinha. Voltou a focar sua atenção ao diálogo dos irmãos.

- O que tem dentro dessa panela?

- Nada. Apenas água fervida. Só isso.

- O que pretende fazer com isso, Tobias?

Jéssica arregalou imediatamente os olhos. Então, esse era o nome daquele maldito. Típico de gêmeos mesmo. Tácio e Tobias. "Calma, Tácio, estou chegando" pensou a policial. Uma nova voz apareceu do nada, assustando-a. Era o GPS informando para que virasse direita. Agora, faltavam poucos metros.

- Tobias, pelo amor de Deus, eu te imploro! Eu te implo-o-o-ro-o! Não faça isso! Não! Não! NÃO!

- Fecha essa matraca seu covarde! Onde estava sua compaixão ao me trancafiar por tanto tempo? Onde está sua valentia agora? Quantas vezes não implorei, assim como você faz neste momento, para você me dar alguns minutos apenas de liberdade? E você o que fazia? NADA! Absolutamente nada! Apenas dizia que era para o nosso bem. Justo isso, não? Eu podado de minha liberdade, para que você tivesse uma qualidade de vida melhor. Agora, você vai pagar o preço!

Jéssica praticamente pulou do carro em movimento quando avistou o casebre abandonado com um número 68 quase caindo ao lado da porta. Disparou em direção à casa que tinha a pintura toda descascada e parecia não ser utilizada há décadas. A estrada de terra formara um redemoinho de pó entre o carro e a casa, o que fez com que Jessica não visse uma enorme pedra no seu caminho. A topada foi forte e a derrubou de cara no chão áspero. Seu celular voou longe e despedaçou-se ao se encontrar com outra pedra de médio porte. Não podia mais ouvir o que se passava dentro de um dos quartos daquela casa, e isso fez com que se desesperasse ainda mais. Sentiu a unha do pé direito latejando intensamente, mas agora não tinha tempo para prestar atenção à qualquer tipo de dor. Tinha que salvar Tácio.

Chegou à porta da frente e recostou-se na parede antiga de madeira. Tinha pressa, mas também se recordava do treinamento. Empunhou sua pistola e girou a maçaneta com cuidado. A porta estava aberta. Descuido ou armadilha? Não sabia dizer e tinha que se prevenir. Atravessou a porta, apontando a arma primeiro para direita, depois para esquerda. Não havia ninguém. A casa era enorme, e sabia que tinha pouco tempo para escolher o cômodo certo. normalmente começaria pelo porão - afinal casas antigas como aquela costumavam ter porões bem propícios para esse tipo de situação -, mas o sinal do celular funcionara bem na maior parte do tempo, por isso deciciu que subiria a grande escadaria de madeira empoeirada à sua frente.

Assim que atingiu o último degrau da escada, ouviu um berro que congelou a alma. Temeu que aquilo significasse o fim, mas tinha que buscar forças. Dessa vez, o grito se repetiu por alguns segundos. Podia notar a dor no timbre de voz. Percebia a pessoa buscando ar, apenas para que conseguisse extravasar o sofrimento que sentia. A voz vinha de cima, no segundo andar. enquanto corria, passou a gritar "Tácio, estou aqui! Eu cheguei! Fique calmo", contrariando todo o treinamento a que fora submetida durante meses.

Quando abriu a porta do sótão, viu a figura incandescente de um homem caído no chão. Podia ver a pele sendo comida pelo calor, enquanto a carne desfigurava o rapaz desacordado. Seu corpo tremia intensamente, e Jessica imaginava o quão insuportável era aquele sofrimento. A janela do sótão estava aberta, mas quando correu até lá não podia ver uma só alma viva. Voltou até Tácio e tentou reconfortá-lo com algumas palavras sem confiança. Sabia como seria aquele final. Chamou uma ambulância pelo rádio preso ao seu cinturão e passou algumas características ainda visíveis de Tácio, como altura, cor de cabelo, porte físico, para reforços policiais. Ficaria ali com ele, e só depois partiria atrás do irmão gêmeo assassino. O silêncio tomou conta do quarto, e só foi quebrado quando uma voz aflita parecia subir as escadas. Jessica empunhou seu revólver e o manteve apontado para a porta. Será que o assassino tinha retornado? Quase atirou quando um senhor atravessou a porta com os nervos à flor da pele.

- Tácio? Não! Não! Meu querido! O que você fez? - lamentou o homem dirigindo-se até o corpo desfigurado no chão.

- Mãos para o alto! - bradou a policial. - Encosta na parede! Já!

O homem recobrou a serenidade ao ver a arma apontada para si. Não sabia direito o que estava acontecendo, mas identificou a mulher como policial. Obedeceu a ordem. Foi revistado minuciosamente, e então ouviu a mulher perguntá-lo.

- Quem é você?

- Meu nome é Robert Thomaz. Sou o médico deste rapaz.

- Médico? Que tipo de médico?

- Psquiatria é minha especialidade. Ah, Tácio! Por quê? Por quê? - respondeu o médico, lamentando em seguida.

- Então o senhor conhece o Tobias? Sabe onde posso encontrá-lo?

- Tobias? - perguntou Robert com cara de espanto.

- Sim. O irmão gêmeo dele. - disse Jessica apontando para o corpo de Tácio.

- Não, minha cara. Tácio não tem irmão gêmeo nenhum. - completou o médico com resiliência.

- Como assim não tem? Ele me ligou clamando por socorro. Eu pude ouvir ele ser brutalmente torturado pelo irmão. Eu pude ouvir ele tendo suas unhas arrancadas. Veja! - disse a policial mostrando os dedos de Tácio ao médico - Viu só? Eu não sou louca!

- Você não, mas Tácio era, minha cara. - a voz do médico agora revelava um certo conformismo pós-choque - Veja bem, o Tácio há anos era meu paciente. Ele tinha um sério distúrbio de personalidade. Ele sempre fora um rapaz muito solitário. Abandonado pelos pais quando nasceu. Criado em orfanatos. Sem família, amigos. Por isso, sua mente criou-lhe um irmão gêmeo como companhia. Tobias, Terêncio, Tony, o nome era indiferente, desde que começasse com a letra "T".

Jéssica estava boqueaberta. Pasma com o relato frio e coerente de um médico que lidara com situações iguais aquela por muito, muito tempo. A veracidade passada pelo garoto havia sido incrível, e a frieza coma qual virara sobre si uma panela com água fervida era inimaginável. Continuou encarando o médico, enquanto ouvia mais detalhes sórdidos sobre a doença do suicida ao seus pés.

- Acontece que esses alter-egos, camuflados na pele de irmãos gêmeos, com o tempo, passaram a tornar-se perigosos, violentos. Tácio passou a assumir a identidade do "irmão" a cada momento em que um stress se manifestava, fazendo com que ele lidasse com determinado problema de maneiras inaceitáveis. Assim que percebemos isso, demos a ele uma dosagem maior de um coquetel de remédios, a fim de inibir essas aparições. Tudo correu bem por um tempo, mas, ultimamente, Tácio dizia receber ameaças do irmão, avisando que ele pagaria por privá-lo de sua liberdade.

- Olha doutor, eu prestei atenção no que o senhor relatou, e, é claro que tomaremos seu depoimento na delegacia, além de precisarmos ver todos os documentos, receitas e tratamentos a que o senhor se refere, mas devo ser sincera, ainda não entendi o que o levou a fazer isso.

O médico ajoelhou-se passando a mão nos fios de cabelo que restavam na cabeça de Tácio. Sentia o calor ainda envolvendo seu corpo, e talvez aquela fora a forma que Tácio encontrara para se punir pelos crimes cometidos por seu alter-ego; afinal de contas, a morte de um significava o fim do outro. Talvez por isso ele ligara para aquela policial pedindo por socorro, e talvez por isso também tenha ligado para o médico informando que estaria naquele local, naquele horário. Quem sabe não queria que toda a verdade viesse à tona, mostrando que no fim havia encontrado um jeito para acabar com as maldades do "irmão". Mesmo que para isso tivesse que sacrificar sua vida. Mas a verdade era muito mais cruel que aquela versão romântica de arrependimento. Então, Robert continuou:

- Minha cara, o que aconteceu aqui é simples. Yin ou Yang. Bem ou Mal. Céu ou Inferno. Quando há ausência de equilíbrio entre essas forças, o confronto é inevitável. A batalha de Tácio foi travada aqui, dentro dessas quatro paredes, e foi Tobias quem a venceu. Nem mais, nem menos.

Ao ouvir o som da sirene da ambulância, Jessica sentou-se no chão do quarto, e, ao lado do corpo daquele louco, desabou em um choro incontrolável que revelava marcas na alma que jamais se apagariam. O médico sentou-se ao lado abraçando-a, já certo de que, dali em diante, teria uma nova paciente.






quinta-feira, 12 de março de 2009

Coisas Que Perdemos Pelo Caminho


Quando paro para pensar um pouco sobre a vida em um contexto geral, consigo enxergar o poder que ela exerce sobre cada um de nós, seres humanos. Somos mamíferos diferenciados. Sentimos, zelamos, cuidamos de nossas "crias", mas, diferentemente da grande maioria dos outros animais da mesma classe, fazemos isso por toda a vida. Prefiro, nesse caso, generalizar a situação, esquecendo-me dos monstros sociais que criamos e abraçamos em nosso dia-a-dia; os pequenos Brutus que se vingam do descaso social, esfaqueando-nos sempre que possível, em uma "vendetta" futil e infinita, na tentativa de alimentar uma sede de sangue que é, na verdade, insaciável. Mas isso é assunto para outro dia. Hoje, quero falar com vocês sobre a vida.


A vida é algo subliminar, porém imprevisível. Pode nos adoçicar com o mais doce mel; como pode nos amargar com a pior das peçonhas. Pode ser insidiosa, mas fazer com que o mamífero vire inseto, incubando-se em um casúlo construído por ele mesmo, para dali a alguns dias transformar-se em uma linda borboleta, renovado em força e espírito; ou pode ser generosa, mas fazer com que o despreparado afunde-se em uma lama de tentações, transformando, assim, o mamífero em anfíbio. Alguns não a suportam e despedem-se prematuramente, outros a abraçam por mais de um século. Porém, algo é indiscutível: no momento em que nascemos, ela é igual para todos.


A verdade é que nossa vida é uma soma de experiências que individualizam o ser humano. Cada um é único, exclusivo, singular, com apenas uma realidade coletiva irrefutável: todos perdemos coisas pelo caminho. As experiências que vivemos por toda nossa trajetória, faz de nós, mamíferos, nada mais que répteis trocando de pele, seguindo em frente com a nova casca, enquanto abandonamos a velha para trás. Mudanças são sempre bem-vindas; renovam o espírito, trazem novas possibilidades, abrem portas diferentes; e, assim como o ar, acredito que todos nós precisamos nos renovar de tempos em tempos. Todavia, muitas vezes deixamos para trás coisas que não deveríamos.


Pergunto-me em diversas oportunidades, onde foi que deixei a inocência da minha infância? Não aquela inocência que poderia me fazer de idiota no mundo real, mas aquela que me trazia a segurança de que tudo sempre daria certo no final; que todos os meus problemas em algum momento se resolverão; que me fazia enfrentar as situações sem perder a alegria intrínseca de criança. Quando foi que perdi essa minha maneira de ser? Queria muito tê-la de volta, de coração.


Em que quilometro dessa trilha deixei, também, aquela ansiedade gostosa da adolescência? Aquele friozinho na barriga que surge quando estamos perto de dar o primeiro beijo naquela linda garota da festa; ou quando percebemos que a fila da montanha-russa já está se aproximando do brinquedo. Aliás, se pudesse definir qual a melhor versão de mundo na minha opinião, diria que seria um gigantesco parque de diversões. Quando vamos ao Parque de diversões, estamos sempre em família ou com amigos, felizes, bem humorados, despreocupados; cercados, entretanto, de regras visando nossa segurança e a de quem amamos, e que buscam um bom convívio entre todas as pessoas que dividem o local. Lá, adulto pode ser criança, sem ser irresponsável.


Também queria buscar aquela rebeldia de alguns anos atrás, quando era um jovem adulto, começando a ser cercado pelas responsabilidades que permeam nossas vidas. Rebeldia que me fazia questionar as coisas, procurar saídas, inventar soluções. Hoje sou mais um pragmático dentro de um sistema em que perguntas deixam de ser feitas por medo das respostas; ou das consequências. Vivo enclausurado por um acúmulo de experiências que me transformaram em borboleta, mas me impedem de voar. Tenho medo de ser livre. A vida me trouxe muita coisa boa, mas o preço tem sido salgado. Quero ser completo. Amo o que tenho e sou, mas quero resgatar o que perdi. A vida não é excludente. Ter um não significa perder o outro, como costumamos acreditar. Mas fato é que essa soma pode te libertar, e uma vez livre, quem consegue parar uma borboleta?


Entretanto, enquanto questionava esses princípios, levei uma nova rasteira da vida. Dessa vez, uma rasteira gostosa, na verdade, maravilhosa, mas que derrubou meus alicerces: João Gabriel. O nascimento do meu filho me mostrou que nossas experiências, nossas cascas, não ficam inteiramente pelo caminho, mas sim, adormecidas, hibernando em um profundo sono, silenciadas pelas novas camadas de pele que acumulamos durante os anos. Meu filho chegou, como uma mensagem da vida, dizendo-me que posso ser completo; que posso ser melhor. Para tanto, basta quebrar o casúlo que me envolve e voar, não para fora, mas para dentro; em uma jornada de auto-conhecimento que me tornará melhor homem, irmão, filho, amigo, mas, sobretudo, pai. Afinal, como disse no início desse texto, eu sou um mamífero, e, pra mim, é para toda vida.

Seja Bem-Vindo, Sr. Nogueira


A sala em que o homem aguardava ser chamado, apesar de pequena, era bem aconchegante. As paredes eram pintadas com uma cor leve que ele não conseguia identificar com precisão, e a poltrona na qual estava sentado era mais confortável que muita cama que experimentara por aí. As paredes estavam repletas de quadros com fotografias de pessoas desconhecidas, todas com um belo sorriso no rosto e um olhar de esperança e satisfação. Aguardava já havia uns 10 minutos pelo menos, e segurava em sua mão uma das misteriosas cartas que vinha recebendo em sua casa nas últimas semanas:


"SR. NOGUEIRA,


A SEU SONHO, NOSSO SONHO TEM O PRAZER DE INFORMÁ-LO QUE SEU PERFIL FOI SELECIONADO POR NOSSA EMPRESA PARA RECEBER NOSSOS SERVIÇOS.


SERVIMOS SOMENTE UM SELETO GRUPO DE PESSOAS POR ANO, E TEMOS COMO OBJETIVO REALIZAR SEUS SONHOS A CUSTO PRATICAMENTE ZERO.


VENHA NOS FAZER UMA VISITA.


ANDERSON GIBRALTAR


P.S.: ESSA PROPOSTA É VÁLIDA ATÉ 19 DE MAIO DO CORRENTE ANO."


E lá estava ele agora, Sr. Nogueira - o homem ria toda vez que via seu nome escrito desse jeito, já que nunca havia sido chamado assim por ninguém -, há dois dias do prazo final, na recepção daquela empresa que jamais ouvira falar antes (nem as buscas pela internet o ajudaram), curiosamente aguardando a explicação de todo aquele mistério.


- Sr. Nogueira - ouviu uma voz chamando enquanto novamente abria um leve sorriso de satisfação - faça o favor. - completou a recepcionista indicando o caminho a ser seguido.


Ele se levantou imediatamente e prosseguiu em passos largos até a sala indicada. Lá se encontrava um homem que aparentava não mais que 40 anos de idade, vestindo um suntuoso terno de grife, gel nos cabelos e gravata de seda. O homem ficou em pé, revelando uma altura imponente e um largo sorriso receptivo.


- Seja bem-vindo, Sr. Nogueira, é um prazer conhecê-lo pessoalmente. - disse o homem levando sua mão ao encontro da dele - Eu me chamo Anderson Gibraltar (Nogueira reconheceu como sendo o nome que constava na carta) e eu sou o fundador/presidente dessa organização, a SEU SONHO, NOSSO SONHO. Nós estamos no mercado há mais de 20 anos realizando os sonhos daquelas pessoas que nós consideramos merecedoras do nosso serviço. Bom - disse o homem interrompendo seu próprio raciocínio -, posso ver em seu rosto que o senhor está repleto de perguntas para fazer, portanto, acho melhor parar de falar e esclarecer suas dúvidas.


- Para ser sincero, devo admitir que estou aqui por mera curiosidade - confessou Nogueira percebendo pela feição de Anderson, que não relatava nenhuma novidade para ele -, pois não entendi exatamente o que vocês podem fazer para me ajudar.


- Sr. Nogueira, em primeiro lugar, o senhor deve entender uma coisa: Nós sabemos tudo a seu respeito. Tudo mesmo. Desde seu time de futebol, cores preferidas, tipos de mulheres, até a aversão que o senhor tem por alguns tipos de tecidos. Não há nada que possa me relatar aqui, que eu já não tenha lido nesse seu profile que me foi entregue - afirmou enquanto abanava uma grossa pasta azul-marinho com as mãos. - Nós da SEU SONHO, NOSSO SONHO sabemos, por exemplo, das cinco pontes de safena que o senhor possui em seu coração, e como essas operações, apesar de parcialmente cobertas pelo seu plano de saúde, deixaram o senhor afogado em dívidas gigantescas.


- Então, vocês também sabem que não tenho um só real para dar-lhes em pagamento, não sabem? Que todo dinheiro que recebo da minha aposentadoria por invalidez, somado ao salário que tiro mensalmente com minha barraquinha de hot-dog clandestina, já estão totalmente comprometidos, certo?


- Sr. Nogueira, sabemos até sobre os 5.000 reais que o senhor recebeu de herança pela morte de sua tia Matilda, e que repousam nostalgicamente escondidos debaixo de seu colchão.


Os olhos do homem arregalaram-se transmitindo todo espanto que sentia naquele momento. Nunca contara nada à ninguém sobre aquele dinheiro, afinal de contas devia não somente alguns empréstimos bancários, como também a amigos e vizinhos. Não era caloteiro, não mesmo, mas precisava de uma segurança para sanar algum possível imprevisto que pudesse surgir. Seu rosto ficou vermelho de raiva no momento em que bradou indignado:


- VOCÊS, POR ACASO, ANDAM ME ESPIONANDO!?!?!?


- Claro, Sr. Nogueira, de que outra forma poderíamos saber se o senhor era realmente merecedor desse benefício que estamos lhe oferecendo agora? - assumiu Anderson sem constrangimento. - Mas o senhor não se preocupe, pois nossa política é de sigilo total, tanto para vocês, quanto para nós. O senhor não relata nossa existência a ninguém, e nós não espalhamos nenhum daqueles pequenos segredos sórdidos que todos nós escondemos dentro de nossos armários, como, por exemplo, cinco mil reais embaixo de um colchão.


- O que vocês querem comigo exatamente? - questionou o homem já um pouco mais calmo.


- Ajudá-lo, nada mais. E, antes que o senhor pergunte, eu digo o porquê. Por que o senhor é um homem bom, essencialmente bom. Apesar de todas as dificuldades e humilhações que passou nessa vida, sempre manteve seu caráter irretocável, uma honestidade inquestionável e uma vontade de viver invejável, mesmo que com sofrimento e dor. E essas são qualidades que nossa empresa admira e busca em um possível candidato.


- Nunca fiz nada além do que precisei para sobreviver. - retrucou Nogueira sentindo-se lisonjeado como nunca antes na vida.


- Sim, mas muitos em seu lugar teriam buscado "facilidades", se é que você me entende. - Nogueira acenou positivamente com a cabeça, invadido por um inédito orgulho próprio, então viu Anderson prosseguir seu raciocínio - e é exatamente essa força interna, essa resiliência, que o fez merecedor daquilo que estamos prestes a lhe mostrar, se for de sua vontade, claro.


- Não vejo mal em prosseguir com essa história por mais algum tempo. - respondeu um pouco ressabiado.


- Ótimo! Então, peço para que assine esse livro de Presença aqui, e que, depois, siga-me até a sala ao lado.


E foi o que Nogueira fez. A sala era mais ou menos do mesmo tamanho que anterior, mas no centro havia algo que, para ele, assemelhava-se a uma cadeira de dentista. Achou aquilo intrigante, mas caminhou mais alguns passos até que Anderson voltou a falar.


- Essa é a sala da Infoterapia. É aqui que sua vida começará a mudar definitivamente. Assim que deitar aqui, começaremos o seu "tratamento". Não se preocupe, pois essa terapia é totalmente indolor. Nós da SEU SONHO, NOSSO SONHO descobrimos uma maneira inédita de injetar informações e habilidades nas partes dormentes do cérebro, ou seja, deixamos nossos selecionados mais inteligentes; velozes; eficazes; competitivos. Durante as próximas duas horas e meia, o senhor receberá uma quantidade de informações que levaria décadas de estudo intenso e aplicado para aprender. Matemática; Física; Cotidiano; História; Biologia; Medicina; Entretenimento; Filosofia; Política; Artes Marciais; Ocultismo, e todo outro tipo de informação que possa imaginar, serão inseridos dentro desses locais inexplorados do seu cérebro, fazendo do senhor uma verdadeira máquina. Além disso, descobrimos que, ao despertar essa parte dormente do cérebro, o indivíduo adquire alguns poderes psíquicos interessantes, que variam de acordo com a pessoa, como telecinese; hipnose; telepatia. Mas nunca conseguimos antecipar se ou qual será despertado. Alguma pergunta?


- Na verdade, não entendi direito nada do que você falou até agora, então só consigo pensar em uma pergunta para fazer. Algo que me chamou a atenção e está me remoendo desde que cheguei aqui. Quem são aquelas pessoas nos quadros pendurados na recepção?


- São apenas algumas das pessoas selecionadas por nós, nada mais. Mas e o senhor, está interessado no tratamento?


O homem nem respondeu a pergunta, já deitando imediatamente na "cadeira de dentista" à sua frente. Anderson riu daquela objetividade e prendeu um eletrodo em cada lado da testa, ligando-o a uma enorme máquina que, ao acender, revelou-se no fundo da sala, que, agora, mostrava-se maior do que parecia anteriormente. Anderson ficou em pé, bem à frente de Nogueira, com os dedos indicadores apoiados nos pequenos círculos presos aos lados da testa. Foi quando, subitamente, sentiu um impacto. De fato, não sentia dor, mas havia um certo desconforto, como se formigas marchassem dentro de sua cabeça. Eram as informações chegando. Os olhos retorciam convulsivamente, e a boca mordia o cilindro de borracha que havia sido colocado entre os dentes pouco antes do processo ser iniciado. E durante os próximos 150 minutos, o "escolhido" debateu-se na cadeira de dentista inadvertidamente.


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Nogueira acordou com a baba escorrendo pelo canto do rosto e um gosto ruim na boca. Quando abriu os olhos percebeu uma nota de R$ 50,00 grudada em seu lábio inferior e uma poça que havia se formado em seu travesseiro. Olhou para os lados e reconheceu o local onde se encontrava. Era seu quarto. Estava em sua casa e, provavelmente, aquela nota que ficara presa em sua boca fazia parte daquele montante que escondia em segredo (nem tão segredo assim agora) embaixo do colchão. Não se lembrava de como havia chegado ali, aliás, a última coisa que recordava fora o momento em que Anderson colocara os dedos indicadores nos eletrodos presos a sua testa. Depois disso, só um enorme vazio, o que era ao menos intrigante, já que o objetivo daquela experiência era encher seu cérebro de informações novas e não privá-lo delas.


Alguns minutos depois, a barriga roncou e, após uma breve inspeção na geladeira de casa, resolveu que faria um pequeno lanche fora. A padaria ficava a poucos metros daonde morava, e ainda por cima tinha preços bem razoáveis, o que fez dela sua primeira opção. Assim que entrou no estabelecimento avistou a bela Maria, uma mulher de 35 anos que aparentava, no máximo, 25. As coxas grossas e suculentas chamavam atenção até dos praticantes do celibato, como o Padre João, e delineavam músculos tonificados que expulsavam qualquer tipo de celulite. O abdômen era perfeito, marcado por pequenos gomos de músculo e invadido por finos pêlos louros e bronzeados, que pareciam fios de ovos brilhantes. Mas eram os olhos azuis que mexiam, de fato, com Nogueira. Tinha paixão por eles, e os dela eram azuis como o mar nos lugares inóspitos ainda não destruídos pela presença do gafanhoto chamado homo sapiens. Adorava encontrá-la pelas ruas do bairro, pois só assim tinha a oportunidade de admirá-la, escondido em algum canto qualquer. Só que dessa vez, podia ver também algo diferente, como se fosse um tipo de raio-x da sua alma, que lhe mostrava o que Maria sentia naquele exato momento. Podia perceber os menores detalhes, como, por exemplo, a hora em que surgiu um pequeno ponto vermelho em sua batata da perna, segundos antes da moça levar a mão até o local e coçá-lo. Era como se tivesse percebido, antes mesmo do que ela, que aquela coceira se manifestaria. Agora, prestando mais atenção, podia observar seu estado de espírito, suas vontades, até seus desejos. Não sabia como explicar isso, apenas pressentia. Aproximou-se da mulher com inédita confiança, e ofereceu-lhe uma bomba de chocolate e um capuccino, o preferido dela, ela diria mais tarde, sem ter idéia de que essa informação, agora, não era nenhuma novidade para ele. Na sua cabeça borbulhavam todos os tipos de assunto, desde política à alta costura. Não havia conversa que ela iniciasse, sobre a qual ele não tivesse absolutamente todas as informações disponíveis a qualquer ser humano. Ele era uma máquina de conhecimento.


A bomba e o capuccino duraram apenas alguns minutos, mas a conversa esticou-se por horas. Maria achava estranho sua atitude, nunca dera muita confiança para estranhos que a abordavam na rua (senão passaria o dia se dedicando a isso, pensava ela, sem falsa modéstia), mas aquele homem pouco atraente, diga-se de passagem, parecia conhecê-la como ninguém em toda sua vida. E aquilo mexia com ela, trazia uma queimação dentro da barriga que em breve se transformaria em um fogo incontrolável, um desejo irreconhecível, que parecia cegá-la impiedosamente, e que a fez convidar-se para ir até a casa dele. Nogueira já começava a entender o que acontecia. A tal de "infoterapia" de alguma forma lhe dava ferramentas que permitiam, através da utilização dessa parte dormente do cérebro, ver o que outros não viam, perceber o que os outros não percebiam e sentir o que os outro não podiam sentir. Sua psique o permitia ler não apenas mentes, mas sentimentos também. Uma sensibilidade extrassensorial que fazia dele alguém muito, mas muito poderoso. Tão poderoso que estava, agora, na cama com aquela deliciosa mulher.


Com o passar dos dias, Nogueira foi percebendo que exercia uma influência poderosa não só sobre aquela cobiçada mulher do bairro, mas praticamente sobre todos com os quais tinha contato. Pelo menos, até o momento, não havia encontrado uma só alma que resistisse a sua conversa, realizando suas vontades e seus desejos. Era tudo muito inusitado. Bastava um mínimo de concentração em um alvo, e Nogueira conseguia entender a pessoa da maneira mais íntima e sublime, surpreendendo-a com comentários e assuntos de seu total interesse, que a deixavam completamente vulnerável as suas vontades e desejos. A Infoterapia era, de fato, muito poderosa, e fizera com que ele praticamente se transformasse em um leitor de pessoas.


Bom, como todos podem imaginar, o poder é algo inebriante e que toma conta de qualquer um, portanto, não levou muito tempo para que Nogueira se dedicasse, quase que exclusivamente, a conquistas baratas e desnecessárias, causando mal-estar e problemas nas vidas de diversos casais que tiveram seu relacionamento abalado ou extinguido em função dele. Não havia como as mulheres resistirem ao seu "charme" por muito tempo. Cedo ou tarde, elas acabavam em sua cama, compelidas por um desejo que elas não conseguiam entender, muito menos seus maridos, bom, pelo menos a maior parte deles. nunca havia tido uma agitada vida sexual, mas, os últimos dias, compensavam os anos de abstinência forçada.


Partiu também atrás do dinheiro fácil, obtendo empréstimos com vizinhos, amigos e até desconhecidos. Depois, as pessoas não entendiam porque emprestavam suas economias para alguém que mal conheciam, mas bastava Nogueira pedir, para que qualquer um cedesse. Torrava tudo em noitadas e mordomias, afinal, quitar o débito não seria problema, apenas "convenceria" o credor a extender o prazo ou, quem sabe, até cancelar a dívida. Largou o trabalho como ambulante e até desistiu de ir buscar o dinheiro de sua aposentadoria, não tinha conta em banco e a fila era sempre muito grande. Transformou-se visivelmente. As pessoas mais próximas, apesar de não resistir a um pedido seu, não apreciavam mais sua companhia, e isso causava tremenda confusão em suas cabeças. "Por que satisfaziam suas vontades quando não gostavam desse novo ELE?" era o que se perguntavam todos, completamente sem resposta.


E assim passaram-se dias, semanas e meses, até que certa tarde, enquanto degustava um sanduíche "gentilmente oferecido" pelo dono da padaria local, um conhecido pão-duro de mão cheia, Nogueira teve o lanche interrompido por uma mensagem recebida em seu novíssimo celular:


"A SEU SONHO, NOSSO SONHO PEDE SEU COMPARECIMENTO EM NOSSA SEDE COM URGÊNCIA!


ANDERSON GIBRALTAR"


A mensagem em seu celular chamou a atenção do homem por duas razões: A primeira, foi o fato dele ter adquirido aquele celular no dia anterior, e não ter cedido ainda esse número à ninguém (muitos, apesar de realizar seus pedidos, não o procuravam mais com a mesma frequência), e a segunda, era a palavra "URGÊNCIA" contida no corpo da mensagem. O que poderia ser tão urgente? Será que aquela terapia tinha efeitos colaterais?, então lembrou-se que nunca havia pago nenhuma quantia pelo tratamento, talvez fosse isso, mas dependendo do valor, nem pagaria, afinal de contas, não tinha assinado contrato nenhum com ninguém. Decidiu que permanecer com a dúvida seria pior do que descobrir qual seria aquela "URGÊNCIA" e resolveu que compareceria naquele endereço no outro dia logo cedo.


E foi exatamente o que fez. No outro dia, bem cedinho, lá estava ele sentado na recepção da empresa em que estivera meses atrás pela primeira vez. A sala continuava a mesma, exceto pelos quadros com as fotos dos clientes que não mais se exibiam pendurados por toda parede. Dessa vez, teve que aguardar pouco mais de uma hora até ser chamado, o que o deixou irritado, não só por se considerar um homem, atualmente, poderoso e importante, mas, principalmente, pelo fato de haver tentado convencer a recepcionista a apressar sua entrada sem sucesso algum. Talvez fosse isso. Talvez tivesse sido chamado até ali para recarregar seu cérebro com uma nova sessão de Infoterapia e poder continuar satisfeito com a empresa pela qual fora selecionado. É, provavelmente era isso. Só uma recarga cerebral, nada mais.


Alguns minutos depois, viu a figura de Anderson aparecer por entre a porta da sala adjacente. O homem fitou-o por alguns segundos e depois pediu para que o seguisse até o outro ambiente. Ao entrar, Nogueira percebeu que todos os quadros que antes ficavam pendurados na recepção, agora estavam pendurados naquela sala. Na verdade, havia muito mais quadros aqui do que caberia na sala anterior. Eram milhares. Homens; Mulheres; Nem Tão Homens e Nem Tão Mulheres; Idosos; Adolescentes; Crianças até; todos misturados numa orgia de retratos de fazer inveja à carteira de clientes de várias empresas. Todos pendurados na sala. Aliás, aquela sala era uma novidade para ele, era gigante e circular e bem menos fresca que a anterior. Com certeza, caso ali houvesse entrada para ar-condicionado, este estaria com algum defeito. Reparou que Anderson o encarava com uma cara bem menos convidativa do que da última vez. As mãos apoiadas no queixo eram sustentadas pelos cotovelos firmes na mesa retangular, que continha apenas uma folha de papel em sua superfície, nada de computador, telefone, porta-retratos, pastas de clientes, apenas aquela folha de papel. Nogueira ficou um pouco desconfortável, mas permaneceu quieto até que Anderson começasse a falar:


- Sr. Nogueira, passaram-se seis meses desde sua sessão de Infoterapia e chegou a hora de discutirmos os valores devidos à nossa Companhia.


- Valores? Mas que valores? - respondeu o homem tentando disfarçar uma surpresa.


- Ora, Sr. Nogueira, os valores referentes aos serviços prestados ao senhor. Lembre-se que nossa carta deixava bem claro "REALIZAR SEUS SONHOS A CUSTO PRATICAMENTE ZERO" - enfatizou Anderson franzindo seriamente a testa - mas tenho certeza de que isso não lhe é, de fato, surpresa, tendo em vista que consta do seu contrato conosco. - completou dando dois tapinhas com a mão direita no papel que repousava na mesa entre os dois.


Nessa hora, Nogueira arregalou os olhos tentando entender sobre o que aquele homem se referia. Nunca havia assinado contrato nenhum com eles. Havia sido levado direto da recepção para sala (se sua memória não estivesse pregando alguma peça), de lá para uma pequena sala onde encontrara o homem à sua frente e, de lá, caminhou direto para o início da Infoterapia. Não, realmente não havia assinado nenhum contrato com eles. Aliás, a única coisa que lembrava ter assinado havia sido aquele tal Livro de Presença... a não ser que aquilo não fosse apenas um livro de presença, mas sim algo que o ligasse legalmente àquela estranha empresa. Só então viu o sorriso na boca de Anderson abrir feito guarda-chuva, podia sentí-lo lendo suas entranhas, assim como fazia diariamente com os outros. Sentiu-se invadido, usurpado com aquela atitude, e entendeu o porquê das pessoas não o procurarem mais. Era como uma mulher tomando banho, ao perceber os olhos de um voyeur fitando-a em um desejo repulsivo. Tinha acabado de juntar as peças do quebra-cabeça, e sentia que Anderson sabia disso. Havia sido enganado pelo homem parado na sua frente.


- Qual o preço? - perguntou resignado - Imagino que um poder assim não seja barato - completou.


- Não, realmente não é, mas para alguém que o recebeu sem gastar absolutamente nada, o custo será praticamente zero, como prometido. Queremos 10% de tudo que o senhor conquistou em razão da Infoterapia.


- Mas... mas eu não consegui emprego nenhum, estou sem trabalhar há meses, não recebo valor algum... nem o da minha aposentadoria recebo mais. Vivi de favores todos esses meses. Percebi que dinheiro é um acessório desnecessário quando se tem o poder de conseguir tudo o que se quer dos outros. Eu não tenho dinheiro algum.


- Só os cinco mil embaixo do colchão - corrigiu Anderson a tempo-, mas isso é mixaria perto do que o senhor nos deve. Monitoramos o senhor durante todos esses meses, entre almoços de graça, hospedagem, transporte, empréstimos pessoais, o senhor nos deve aproximadamente essa quantia - afirmou o homem enquanto mostrava ao sujeito um guardanapo com o números escrito à caneta. O valor era altíssimo e levaria tempo para ser levantado por ele, mesmo com a ajuda dos poderes atuais. Então Anderson continuou - Isso sem contar, claro, as mulheres. Bem, considerando que o senhor não comia ninguém a um bom tempo, e levando em conta todas as mulheres que o senhor usou e abusou nesses últimos meses, tomando por base o preço médio de uma acompanhante intermediária, adicionando um bônus pelas orgias experimentadas, posso calcular esse como sendo o valor final do seu débito. - concluiu mostrando novamente o guardanapo, agora ainda mais rabiscado por uma estranha conta rasurada à caneta. Nogueira quase infartou. Sentiu caminhões basculantes trafegando por suas pontes de safena, comprimindo o coração numa dor alarmante. Não tinha como pagar aquilo. Na verdade, poucos teriam condições de quitar uma quantia tão exorbitante. Havia sido enganado, e, agora, não via saída alguma para seu dilema.


- Pela sua reação, vejo que não está pronto para honrar seus compromissos para conosco. Entretanto, há outra possibilidade, para sua sorte.


- Qual possibilidade é essa? - Nogueira inquiriu entusiasmado.


- Consta no seu contrato. - respondeu o diretor, empurrando o papel na mesa em direção ao seu cliente. - Cláusula IX.


O sujeito, esperançoso, nem leu as cláusulas anteriores e foi direto no texto da citada Cláusula IX que regrava: "Em caso de inadimplência da quantia acordada acima, fica o CONTRATANTE sujeito a quaisquer determinações impostas pela CONTRATADA, sejam elas quais forem, de qualquer razão, ordem ou circunstância, sem direito a nenhuma contestação e/ou questionamento daquilo que for requerido, estando obrigado ao cumprimento total e intransferível da obrigação que lhe for imposta", ou seja, ele estava nas mãos daquele vagabundo que agora o observava com uma altivez irritante.


- Esses termos não seriam validados em nenhum tribunal. Nenhum juiz acolheria essas condições leoninas. Isso é um ultraje!


- Calma, Sr. Nogueira. O senhor nem sabe o que nós queremos, ainda.


- Já imagino que boa coisa não seja. Fale logo, então, seu desgraçado! O que é que eu tenho de tão importante que você possa querer em troca da dívida?


- Nada demais, apenas sua alma.


- Como assim minha alma? - indagou o sujeito sem entender direito o significado daquilo.


- Ora, Sr. Nogueira, sua alma, aquilo que o mantém vivo, sua essência, sua continuidade, enfim, sua alma - completou sem muita paciência.


- E quem é você para querer minha alma? Lúcifer? Satanás? O Coisa-ruim?


- Não, mas estou pleiteando o cargo, talvez daqui uns 500, 600 anos, se conseguir encaminhar bastante almas como a sua lá para baixo.


- Eu.. não... est...tou... te... enten...dendo - falou o homem sentindo uma dificuldade de respirar e uma fraqueza nas pernas que o deixou genuflexo.


- Tsc... Tsc... Tsc... Chega a dar até dó de pessoas iguais a você, mas como gostei do senhor, Sr. Nogueira, vou deixá-lo um pouco mais a par da dura realidade. No inferno, caro amigo, também há competição, também há metas a cumprir. Somos milhares de candidatos pleiteando o Cargo Supremo, dado àquele que vocês gostam de chamar de lúcifer, diabo, satanás, etc. Mas o mal tem prazo de validade também, assim como um jogador de futebol ou um escritor ou qualquer outro profissional, a maldade atinge seu ápice e depois de um tempo rola ladeira abaixo. Ninguém consegue ser mal por toda existência. Nosso atual Mestre Supremo, ou Lúcifer como vocês gostam de dizer, já atingiu seu auge há um bom tempo, e seu espaço está sendo tomado por milhares de formiguinhas como eu, mas só há lugar para um Mestre Supremo, e como a competição é muito acirrada (vocês não fazem idéia das coisas das quais alguns são capazes lá embaixo) eu pensei "O que fazer para conseguir a atenção DAQUELE que nomeará o sucessor?", e cheguei a conclusão que havia uma única coisa que poderia ser feita de diferente: Trazer para o inferno almas boas. "Mas Lêniter (esse é meu verdadeiro nome) como fazer para levar almas boas para o inferno?", fácil, respondo eu, basta fazê-las assinar um contrato vendendo sua alma, e depois fazê-las pecar, sem remorso. Simples.


Nesse momento, Nogueira sentia o peito pulsando em um velocidade frenética, o coração acelerado deixava a vista embaçada, e agora Nogueira caía deitado de lado no chão da sala, ainda lutando em busca de ar, como um asmático diante de um ataque de asma mais sério, sem a presença de sua bombinha. Os olhos de Lêniter eram impiedosos e sua boca, mais ainda:


- É o seu caso, meu caro. Um homem que a vida inteira foi honesto e respeitador, que trabalhou nos mais sórdidos subempregos existentes, que sempre apregoou a justiça, mesmo sendo injustiçado pela sociedade e seus governantes, que sofreu problemas de saúde e teve que se endividar para quitar parte do débito que deveria ter sido bancado pelo Estado, a quem prestou conta por toda a vida. Um homem que, apesar de todas as mazelas vividas, sempre preservou seu caráter e sua índole, agora transformado em um porco egocêntrico no momento em que sentiu o gostinho do poder. Você, meu caro Nogueira, poderia muito bem ter usado sua nova condição para ajudar pessoas mais necessitadas, como sempre fez durante sua vida, mas ao invés disso, destruiu casamentos e enganou amigos, vizinhos e parentes. Afastou de si todos aqueles que se orgulhavam de tê-lo conhecido, transformando-se numa pessoa mesquinha, fraca, má. E onde você acha que acaba esse tipo de pessoa? Você poderia ter sido bom, e, caso tivesse sido, hoje nada seria cobrado de você, Cláusula X do seu contrato, mas você infringiu as regras da sociedade em benefício próprio, e agora o preço que lhe imponho é esse: Sua Alma!


Os olhos do homem combalido no chão viravam para cima deixando o globo ocular com uma cor totalmente branca. Da boca saía uma baba amarela fétida, que se assemelhava ao pús produzido pelo corpo humano. A acidez da baba corroía seus lábios e algumas partes do braço em que havia respingado. Era o fim se aproximando. Rapidamente. Lêniter, impassível, continuou:


- Não há pessoas boas no mundo, o que há são circunstâncias que favorecem o aparecimento de bondade nos indivíduos. Seja por medo das consequências; por temer a punição divina; por tranquilidade financeira; ou por conformidade com a falta de perspectiva de vida; algumas pessoas se tornam superficialmente boas, mas basta um pequeno empurrãozinho para que essa máscara caia e o sujeito mostre sua verdadeira essência. Só é possível conhecer alguém de verdade, quando esse alguém tem poder em suas mãos, como seu caso, por exemplo. A diferença entre o remédio e o veneno é a dose aplicada, no seu caso, eu apenas caprichei na quantidade.


O homem mal conseguia manter-se lúcido com a falta de ar nos pulmões. Tentava resistir o máximo possível, mas seu destino já estava traçado. Olhou para os quadros afixados na parede e viu o cimento derreter com o fogo que se formava ao seu redor. A pintura da parede derretia e escorria em direção ao chão, como o mel produzido em uma colméia. O calor se tornava cada vez mais insuportável, e as molduras dos quadros desapareciam em poucos segundos. Só então, o rapaz sofreu o golpe de misericórdia. Todas aquelas pessoas nos quadros, na verdade estavam lá, de corpo presente, acorrentadas, pregadas e algemadas em longas cruzes de madeira e fogo ardente, queimando ali por toda eternidade. Formavam um círculo de sofrimento e pavor, apesar de já parecerem indiferentes a dor. E no meio de todas aquelas cruzes incandescentes, havia uma vazia, imponente, ornamentada apenas por uma placa que dizia: Seja Bem-vindo, Sr. Nogueira. E foi nesse momento, ao entender que passaria a eternidade ardendo naquelas chamas viscerais, que Fausto deu seu último e condenado suspiro.