quinta-feira, 12 de março de 2009

O Lado Esquerdo do Cérebro


David entrou em casa suando de tão nervoso. As pupilas se retraíram com a claridade da pequena sala de reboco, contrastando com a noite que era engolida pelo mau tempo e pela chuva, tornando-a ainda mais obscura. O pai era policial e rapidamente notou o desespero nas feições do filho, indo ao seu socorro. O garoto arquejava conturbadamente enquanto amparava as costas contra a áspera parede da casa.


Visivelmente preocupado, o pai correu até a cozinha buscando um copo d´água com açúcar para o perturbado rapaz. Aflito, perguntou o que havia ocorrido, e o garoto, agora mais ponderado, caminhou até o sofá iniciando o relato dos fatos.


Ele costumava ir até à favela do Dendê visitar uma agradável cocota com quem estava enamorado. A menina era um pequeno esboço divino, segundo os comentários gerais, e David a havia conquistado. Até aí, não existia problema algum, exceto o fato dele viver na favela do Glicério, histórica rival no narcotráfico. Mas David não mantinha contato com nenhum traficante, portanto isso não o afligia muito.


E justamente hoje, ao visitar a casa de sua namorada, tinha sido surpreendido por uma incursão bélica por parte dos traficantes de sua favela, no morro dos Glicérios. A troca de tiros foi inevitável. David precisava voltar para casa e, com o aparente cessar de tiros, quis aproveitar a oportunidade para ir embora, mesmo com os apelos de sua garota para que ficasse. Enquanto descia os degraus da entrada principal, foi abordado por um elemento empunhando um 38. David prontamente afirmou não pertencer ao tráfico, dizendo ser apenas um trabalhador voltando para casa. O elemento começou a rir incessantemente. Claro que sabia que aquele homem frouxa não pertencia ao mundo do crime, mas sabia também que ele morava no mesmo morro em que moravam os invasores, e que ele namorava a mulher mais "pitelzinho" do pedaço. E essas eram justificativas mais-do-que suficientes para matá-lo. David fechou os olhos ao ouvir sua sentença de morte, e preparou-se para o pior. Estranhamente, escutou um barulho de disparo, mas não havi sentido dor alguma. Abriu os olhos e viu seu executor caído no chão. A cabeça sangrava copiosamente, criando um rio de sangue em torno do homem alvejado. O tiro havia acertado a parte esquerda do cérebro, o que David achou interessante, pois essa era a parte do cérebro na qual tomamos todas as nossas decisões. E aquele garoto havia decidido matá-lo. e isso tinha ocasionado sua morte.


Enquanto ficava paralisado, viu o semblante de um homem caminhando em sua direção. Era Eustáquio - ou Frita-Kibe como era conhecido - um renomado traficante da favela do Dendê. Eram eles que estavam invadindo o morro dos Glicérios, e era ele que salvara sua vida. Frita-Kibe perguntou a David se ele estava bem. Olhou com desprezo para o corpo sangrando no chão e, após cuspí-lo, afirmou que ninguém além dele tinha direito de matar alguma pessoa de sua favela. Deu dois tapas nas costas de David, e pediu que ele fosse embora.


O pai de David ficou perplexo com a história narrada pelo filho. Eustáquio não passava de um traficantezinho de merda, e agora havia salvado a vida de seu filho. Não conseguiu dormir aquela noite. Devia a vida de seu garoto à um bandido, assassino sem remorso algum ou misericórdia. Ou quase sem misericórdia, afinal era exatamente isso que ele havia oferecido ao seu filho. Pensou muito e tomou uma decisão. Iria procurar Eustáquio e agradecê-lo por salvar a vida de David.


No dia seguinte, caminhou até o topo do morro, e lá encontrou o traficante. Apresentou-se como pai de David, e com um aperto de mão agradeceu seu "benfeitor". Frita-Kibe ficou surpreso e comovido com a atitude daquele senhor, e iniciou um agradável bate-papo com ele. Alguns minutos depois, quando homem se virou para ir embora, perguntou o que ele fazia para ganhar a vida. O pai de David pensou em omitir o fato de ser policial, mas depois daquela prazerosa conversa e com o rapaz sabendo os motivos dele estar ali, decidiu contar a verdade. Eustáquio sorriu com aquele paradoxo, acenando com as mãos para que o homem fosse embora. E assim que o pai de David virou, foi alvejado por um tiro certeiro na cabeça. Bem ali no lado esquerdo do cérebro. Aquele responsável pelas decisões que tomamos.

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