segunda-feira, 15 de junho de 2009

A Sétima Página


Se Cláudio Cavalcanti tivesse tido como pai metade da competência que tivera como empresário, seus filhos, certamente, teriam sido as crianças mais felizes do mundo. Cláudio passara a infância submetido à rigidez militar do pai. Fora ensinado a manter-se sempre sério; brincadeiras, segundo ele, não passavam de perda de tempo e faziam parte de um inadimissível processo de "aparvalhamento do caráter". Nunca ganhara um brinquedo; apenas disciplina. Essa rigidez foi repassada aos filhos, através de uma educação severa e distante. Quando separou-se da esposa, então, as coisas ficaram muito piores. O afastamento deixou de ser apenas emocional, tornando-se físico também. Finais de semana com o pai eram coisa cada vez mais rara para a alegria dos quatro filhos - três homens e uma mulher - que preferiam as aulas de matemática às visitas à casa do pai.

Por isso, não era de se estranhar que nenhum deles tivesse despejado um rio de lágrimas durante o velório do pai. Na verdade, uma só lágrima já seria surpreendente. Os filhos sempre tiveram tudo do bom e do melhor - afinal, Cláudio, apesar de disciplinador, era bastante generoso -, menos a certeza de que o pai os amava. Na visão dos filhos, tudo que os envolvia parecia uma obrigação desagradável para ele. E nenhum dinheiro no mundo convenceria-os do contrário. Talvez por isso, a relação entre pai e filhos havia se transformado numa imensa geleira polar, intransponível até para o maior Navio-cargueiro.

Dez dias após o velório, procedeu-se a leitura do testamento de Cláudio. Os quatro filhos foram convocados para presenciar o ato legal, e descobrir como seria feita a divisão dos inúmeros bens materiais deixados pelo pai. Mansões, coberturas, casas de praia e de campo, imóveis comerciais, carros, ações da empresa, enfim, uma verdadeira fortuna.

Chegaram juntos ao escritório do advogado particular do pai. Dr. Robson era um homem visivelmente obeso e de uma simpatia singular. Fez questão de recepcioná-los pessoalmente e conduzi-los à sala onde daria início aos procedimentos legais. Quando os herdeiros adentraram a vasta sala de reuniões, assustaram-se com o número de pessoas presentes. Diversos homens e mulheres aguardavam em silêncio o início da leitura, e poucos deram qualquer importância à chegada dos quatro herdeiros. O filho mais velho questionou a necessidade de tantas pessoas e ouviu do advogado que ele apenas convocara aqueles indicados pelo falecido empresário.

A leitura foi iniciada e a primeira página do testamento apenas relatava os aspectos legais do ato, indicando quando e onde fora registrado, quais eram as testemunhas, etc. Enfim, um porre para qualquer um, ainda mais para quem já demonstrava sinais de impaciência. Só a partir do meio da segunda página é que as vontades do falecido foram reveladas. Os filhos ficaram estupefatos quando souberam das decisões finais do pai. Descobriram que todos os ali presentes eram amigos íntimos ou colegas de profissão por quem Cláudio tinha muito estima. Viram a casa de campo virar pó ao ser entregue ao amigo e companheiro de golfe. Deram adeus à casa de praia que havia sido oferecida ao obeso advogado que lia o testamento. Ficaram perplexos ao verem apartamentos, mansões, carros e tudo mais evaporando em uma divisão irracional que apenas os deixavam perplexos e boquiabertos.

Foi por volta da quinta página que o filho mais velho levantou-se em repulsa, criticando e colocando sob suspeitas aquela leitura a que se referia apenas como "uma indubitável farsa". Recusou-se a ouvir uma só palavra a mais e saiu brandindo a mão ameaçadoramente, enquanto cuspia impropérios cabulosos. A irmã, única mulher entre os quatro, mostrou-se ainda mais indelicada que o irmão, tentando, inclusive, agredir o simpático advogado, a quem se endereçava como "gordo de merda" e "poço de banha". Quando, já na sexta página, Dr. Robson relatou que somente metade das ações iriam para os herdeiros, o caçula levantou-se calmamente da cadeira, aprumou-se com arrogância e frieza, e encarando os outros convidados disse para que não comemorassem muito, pois esse testamento não continha validade legal alguma. Prometeu anulá-lo e depois retirou-se tranquilamente da sala de reuniões.

Dos quatro, apenas Lucas manteve-se imóvel na cadeira. Não estava gostando daquilo, mas, sinceramente, estava pouco preocupado com quem ficaria com o que. Dr. Robson, num tom defensivo, perguntou ao rapaz se ele também não iria sair. Lucas, apoiou os cotovelos na mesa e respondeu:

- Não vim aqui pelo dinheiro, nem pelos bens materiais. Estou aqui somente em respeito à memória do meu pai. E se ele acha que essas pessoas são merecedoras do que estão recebendo, quem sou eu para criticá-lo. Só Deus sabe que EU, com certeza, não fiz por merecer. Sim, ele poderia ter sido um melhor pai, mas, com certeza, eu também poderia ter sido um melhor filho. Mais presente e compreensivo. Prossiga, Dr. Robson. Respeitarei as vontades dele.

Assim que terminou de falar, Dr. Robson abriu um largo sorriso e Lucas viu todas as pessoas da sala encarando-o com um ar leve e receptivo. O obeso advogado ergueu-se da cadeira com dificuldade, virando a página do testamento enquanto olhava para o herdeiro.

- Ele sempre soube que seria você. Fico feliz que meu amigo tenha acertado.

Lucas só entendeu a frase quando o advogado deu início à leitura da sétima e última página do testamento. Aquilo tudo havia sido um mero teatro, e todos aqueles na sala eram somente atores contratados. Pelas leis brasileiras, Cláudio era obrigado a deixar tudo para seus filhos - nunca mais se casara novamente - e aquelas baboseiras não tinham o menor validade. Quando seu irmão deixou a sala avisando que nada daquilo tinha valor legal, estava com toda a razão. Cada um dos quatro ficaria com 25% da herança, sendo que os imóveis e carros seriam vendidos e partilhados em quatro partes iguais. Mas Cláudio havia reservado, ainda, uma última surpresa.

Dr. Robson dirigiu-se ao armário que ficava atrás da cabeceira da mesa e abriu uma das gavetas. Lá dentro havia quatro fitas VHS, cada uma com o nome de um dos filhos escritos em uma fita crepe já desgastada. O advogado pegou somente a que tinha o nome de Lucas. Depois queimaria as outras, seguindo instruções do falecido amigo. Colocou a fita dentro do vídeo-cassete e pediu a todos que se retirassem. Apertou o PLAY e deixou Lucas sozinho na sala. Quando o pai apareceu na tela, o rapaz desabou em emoção. Cláudio começou relatando que acabara de descobrir sobre o câncer fulminante e o medo que tinha da morte. Mas disse que seu maior medo era deixar esse mundo sem que pudesse dizer ao filho o quanto o amava de verdade. Foram os cinco minutos mais emocionantes na vida de Lucas. Pela primeira vez, em toda sua vida, viu o pai chorando, totalmente entregue aos sentimentos. Uma imagem que ficaria eternizada em suas lembranças. Sim, o pai o amava. Do jeito dele, mas amava. Sentiu-se libertado. Livre de uma terrível culpa que aflige aqueles que não sabem onde ou quando erraram. Nenhum outro legado poderia ser mais maravilhoso. Pausou o sorriso do pai na tela e seguiu até o monitor. Acariciou o rosto do pai, como se ele estivesse ali à sua frente, em carne e osso. Ajoelhou-se dominado por um choro que misturava culpa e alívio.

Lucas deixou aquela sala como um milionário, mas o dinheiro do pai era a última coisa que passava pela sua cabeça.